quinta-feira, 9 de setembro de 2004

Mastigar e digerir a Índia (Lisboa, 2002)

Parto deste fim-de-semana para Amritsar, numa visita ao Golden Temple dos Sikhs (vide foto no topo), e ao exponente do nacionalismo radical e ultrapassado a que assistirei na fronteira indo-paquistanesa de Wagh. Sobre esta mini-viagem, com colegas da JNU, escreverei na segunda. Deixo este meu escrito de 2002 para se entreterem.

O típico turista ocidental viaja para a Índia parte em busca de uma terra mítica. Para muitos portugueses nem se põe sequer a hipótese de partir para esse canto, com medo das doenças, da criminalidade ou do clima, há de tudo.

Depois há aqueles aventureiros, alternativos, que apostam forte no relativismo cultural. Saem de Portugal frustrados com o consumismo capitalista, com a falta de amor ou com o governo de direita.

O problema é que voltam passado uns tempos, e, não querendo dar o braço a torcer, mitificam ainda mais a Índia, retratando com flores e cores tudo o que viveram, e esquecendo tudo o que de feio e horroroso por lá viram.

Imbuídos do seu espírito subjectivista e relativizador vão engolindo tudo com o que são confrontados na Índia, em vez de o mastigarem e o digerirem. Voltam com dores de barriga, mas negam-no, para salvarem a honra.

Como aquele meu amigo alemão que orgulhosamente disse que na Índia viveu como um indiano, comendo tudo e em todo o lado, incluindo nas barraquinhas de ruas, porque em Roma sê romano, adiciona com um sorriso superior. Mais tarde, numa frase murmurada, conta que teve um problema de estômago, tendo sido evacuado de emergência da Índia e tendo depois estado internado alguns meses num hospital alemão.

Para mastigar e digerir o que vemos e o que vivemos é preciso reconhecer que o que vemos e vivemos ali não é o que vemos e vivemos normalmente aqui. Que algo de diferente se passa. Que necessariamente estamos preconceituados e limitados pelas normas socias com que fomos educados ou com que fomos confrontados no passado. Obviamente que todos gostaríamos de ser racionais e frios de modo a dispensar preconceitos e juízos subjectivos.

No entanto, a nossa subjectividade normativa e social é impossível de eliminar. Não podemos aspirar a algo impossível. Nem isso é desejável: perderíamos a nossa esência humana e social, passando a robots mecânicos e meramente registadores de factos e realidades.

Assim, só nos resta enquadrar e domar essa nossa subjectividade. Estarmos conscientes dela, identificá-la sempre que ela aparece no palco (na nossa cabeçinha). Ignorá-la é impossível e quem o tenta é necessariamente desequilibrado.

O tal típico ocidental maravilhado na Índia tende a relativizar, a aceitar sem questionar (sem mastigar). Prefere muitas vezes olhar para o que acha que deve olhar e ignorar aquilo que não é suposto ver ou conhecer. E, mesmo que olhe para o que não deve olhar, relativiza-o e contextualiza-o. Isto é, aceita-o como sendo inquestionável porque faz parte de outro quadro normativo ou social que não é o seu. Recusa-se a questionar e a avaliar porque acha que não tem o direito de o fazer.

Obviamente que, ao voltar para o seu ninho, prefere mostrar algo de romântico. As partes mais chocantes do seu álbum fotográfico - as que resistirem à censura pela mão que orgulhosamente o folheia - são apresentadas de modo cómico, ou romântico, fugindo a uma interpretação e confrontação mais intensa. “Olha esta vaca no meio do lixo! Sabias que é bom elas andarem na rua porque comem o lixo e mantêm tudo limpo?”.

Eu tento não fugir a essa confrontação. Entre o simplismo do turista que se recusa a ir à Índia ou aquele que só lá permanece fechado nos hóteis de 5 estrelas, e o suposto turista informado que viu a “verdadeira Índia”, escolho uma via intermédia. Nesta minha última viagem à Índia acho que esta via deu os primeiros frutos.

Se por essência nunca fui um relativista subjectivo que se recusa a mastigar, por outro lado, tudo o que antes mastigava sabia muito mal e era obrigado a cuspi-lo, rejeitando-o. Talvez ainda o rejeite agora, talvez o que vejo, sinto e vivo na Índia tenha um gosto pior do que nunca, mas agora sinto-me mais capaz de o mastigar, de o engolir, e, acima de tudo, de o digerir. Assim, a longo termo, até sabe bem.

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