A Índia está cheia de hierarquias. Uma delas encontra-se na minha faculdade. A School of International Studies tem quatro pisos. Sendo o MA em que me encontro inscrito o grau académico mais baixo, as aulas realizam-se no primeiro piso, enquanto os estudantes mais avançados, M.Phil e Ph.D, têm as suas aulas e seminários simbolicamente localizados no segundo e terceiro piso respectivamente.
Em que espaço físico bebo eu dos conhecimentos indianos? Entra-se por uma porta pesada de madeira asfixiada por cartazes e papéis colados a anunciar Public meeting: Indo-Pak talks, 25-09, 3pm, Seminar Room e Prof. Arjun Saxena will not give class tomorrow because of illness ou Looking for white European student-models for photo-shooting in Bombay.
Três filas de umas quinze mesas e bancos alinham-se geometricamente do lado esquerdo. Normalmente, de manhã, cinco milímetros de pó avermelhado cobrem o negro das mesas. O pó entra facilmente pelas dezenas de janelas que circundam toda a sala, deixando entrar ora o asfixiante calor, ora o gélido frio, e às vezes o confuso voar de um amarelo papagaio perdido, o estridente guinchar dos travões de um autocarro lançado a grande velocidade ou o abafado mas longinquamente audível grito de uma mulher acabada de ser mordida por uma verde serpente escondida entre a erva daninha.
Ladeando os bancos, tão silenciosos, várias colunas de som pretendem prestar um serviço que certamente nunca prestaram efectivamente. Datam talvez de há dois ou três decénios, são de fabrico indiano, Bhuja. Por cima, as ventoinhas trituram o grosso e pesado ar, o cheiro a suor, as palavras e o pó.
Do lado direito, em memória do autoritarismo britânico, um estrado de madeira eleva o pesado e igualmente de madeira púlpito professoral. Por detrás está talvez o único testemunho do que chamamos globalização, um quadro sintético branco, sem marcador à vista, pendurado na parede bolorenta e poeirenta que rapidamente nos relembra a nossa situação geográfica no subcontinente indiano.
Desde o primeiro dia de aulas assombra-me uma única palavra escrita a tinta de marcador azul, no canto superior direito, que parece não ter sido apagada de propósito, em minha honra, ou que talvez por forças maiores que desconheço seja inapagável, indestrutível, invencível na sua pertinência perante um lusófono que teima em levar avante uma vida em Deli. Lusíadas. Todos os dias, há mais de um mês, os professores e estudantes escrevem e apagam no quadro. Lusíadas, ali em cima, do lado direito, resiste, no branco quadro indiano. Todas as manhãs, olha-me nos olhos e lembra-me que estou ali, embora seja daqui.
Ao lado do quadro, um grande mapa mundo em papel. Philips Commercial Map of the World, 1985. A União Soviética imponente e dominante, todas as manhãs, de Kiev a Valdivostok, de Leninegrado a Estalinegrado, outro tempo, ali parado mas vivo. Ninguém se lembrou de mudar de mapa. Talvez ninguém queira, acreditar. Alguém corajoso, com uma caneta, incluiu a Cachemira paquistanesa como parte indiana. Entre Popper e Lakatos, depois de Morgenthau e Platão, antes de Kautilya e Waltz, durante Caste System in India e Gandhi's Swaraj, o mapa esvoaça a cada corrente de ar que assola a sala, lembrando-me que também estou ali, ou aqui, que somos uma mancha amarela, ou vermelha, pouco importa, um pedacinho do destino ao sabor do vento.
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