segunda-feira, 27 de setembro de 2004

Mastigar e Digerir a Índia, 2002 (Fragmentos IV)

Apanho o ferry-boat, apinhado de gente, motas e carros. Chama-se Penha de França e a ferrugem demonstra que a idade já pesa, uma embarcação baptizada talvez ainda no tempo dos portugueses. A meio caminho, atravessando o rio, desloco-me para a parte de trás do barco. Um grande e pesado parafuso ferrugento está solto e a água do rio doce invade o convés e cobre os meus poeirentos pés. Alguém deve ter reparado, penso, e delicio-me com a verdejante paisagem.

sexta-feira, 24 de setembro de 2004

Cartilha do Estudante

Acabo de chegar da universidade, são 1:32 da manhã. Fui a uma conferência sobre Indo-Naga Peace Talks, sobre o separatismo de um estado do Northeast indiano, Nagaland, uma região maioritariamente tribal que há mais de sete décadas luta pela auto-determinação.

A conferência realizou-se numa cantina das residências. Uma mesa principal com um moderador e dois oradores e muitos bancos alinhados com dezenas de estudantes atentos. O debate reduzido à essência, sem microfones, powerpoints, gravatas e coffee-breaks.

Falou uma das mais conhecidas e temidas advogadas indianas, defensora dos direitos humanos, Nandita Haksar. É filha de um dos mais poderosos e influentes políticos indanos, de igual apelido, que aconselhou Indira Gandhi no Governo, nos anos 70. Foi ela que defendeu com sucesso o caso do professor universitário cachemire, Geelani, que foi condenado à morte por suposta cooperação nos atentados terroristas ao Parlamento indiano em 2001 e posteriormente ilibado pelo High Court de Nova Deli. Defendeu igualmente um civil que foi acusado de tentar desviar um avião para a Tailândia, supostamente com apoio dos separatistas Nagas.

Tem uma casa em Goa, onde mora desde 1996. Como tenho dois amigos cachemires, estudantes na JNU, tive o privilégio de a conhecer pessoalmente na semana passada. Deu-nos boleia e conversei longamente com ela. É certamente a melhor oradora e a mais corajosa mulher que encontrei até agora na Índia e talvez na minha vida. Recebe repetidos insultos por carta e foi ameaçada de morte repetidas vezes. Não conhece tabus, fala daqueles temas que mais são temidos, espeta o dedo nas feridas escondidas.

Quando ia no carro dela os nossos telefones estavam sob escuta. Foi por isso que ela gentilmente recusou a minha ingénua oferta quando pediu um telemóvel para contactar alguém. Agora já aprendi a ter mais cuidado, isto não é um moderado país à beira-mar plantado. A minha avidez em conhecer e comunicar tem que se manter dentro de certos limites. Afinal, sou um hóspede que se deve mostrar agradecido e não olhar para dentro dos quartos intímos.

Depois do encontro desta noite consegui aproximar-me dela e cumprimentá-la. Depois rumei com alguns colegas para uma das muitas esplanadas no campus que estão abertas até de madrugada. Era meia-noite e comecei a jantar. Iniciou-se uma discussão sobre terrorismo, com especial ênfase no conflito israelo-árabe. Participantes: eu, a comer, um colega cachemire e dois colegas nepaleses. Fruto da discussão nasceu a iniciativa de nos encontrarmos em tertúlia, de noite, no campus, uma vez por semana, para usar das nossas capacidades retóricas e abusar das nossas ideias e ideais.

Sinto-me mais próximo do meu ideal de estudante que tão avidamente defendia na UNL, na Avenida de Berna, sob o ridicularizado e enxovalhado conceito de Cartilha do Estudante Tinaka. Aqui encontro espaço.

quarta-feira, 22 de setembro de 2004

Sala de aula

A Índia está cheia de hierarquias. Uma delas encontra-se na minha faculdade. A School of International Studies tem quatro pisos. Sendo o MA em que me encontro inscrito o grau académico mais baixo, as aulas realizam-se no primeiro piso, enquanto os estudantes mais avançados, M.Phil e Ph.D, têm as suas aulas e seminários simbolicamente localizados no segundo e terceiro piso respectivamente.

Em que espaço físico bebo eu dos conhecimentos indianos? Entra-se por uma porta pesada de madeira asfixiada por cartazes e papéis colados a anunciar Public meeting: Indo-Pak talks, 25-09, 3pm, Seminar Room e Prof. Arjun Saxena will not give class tomorrow because of illness ou Looking for white European student-models for photo-shooting in Bombay.

Três filas de umas quinze mesas e bancos alinham-se geometricamente do lado esquerdo. Normalmente, de manhã, cinco milímetros de pó avermelhado cobrem o negro das mesas. O pó entra facilmente pelas dezenas de janelas que circundam toda a sala, deixando entrar ora o asfixiante calor, ora o gélido frio, e às vezes o confuso voar de um amarelo papagaio perdido, o estridente guinchar dos travões de um autocarro lançado a grande velocidade ou o abafado mas longinquamente audível grito de uma mulher acabada de ser mordida por uma verde serpente escondida entre a erva daninha.

Ladeando os bancos, tão silenciosos, várias colunas de som pretendem prestar um serviço que certamente nunca prestaram efectivamente. Datam talvez de há dois ou três decénios, são de fabrico indiano, Bhuja. Por cima, as ventoinhas trituram o grosso e pesado ar, o cheiro a suor, as palavras e o pó.

Do lado direito, em memória do autoritarismo britânico, um estrado de madeira eleva o pesado e igualmente de madeira púlpito professoral. Por detrás está talvez o único testemunho do que chamamos globalização, um quadro sintético branco, sem marcador à vista, pendurado na parede bolorenta e poeirenta que rapidamente nos relembra a nossa situação geográfica no subcontinente indiano.

Desde o primeiro dia de aulas assombra-me uma única palavra escrita a tinta de marcador azul, no canto superior direito, que parece não ter sido apagada de propósito, em minha honra, ou que talvez por forças maiores que desconheço seja inapagável, indestrutível, invencível na sua pertinência perante um lusófono que teima em levar avante uma vida em Deli. Lusíadas. Todos os dias, há mais de um mês, os professores e estudantes escrevem e apagam no quadro. Lusíadas, ali em cima, do lado direito, resiste, no branco quadro indiano. Todas as manhãs, olha-me nos olhos e lembra-me que estou ali, embora seja daqui.

Ao lado do quadro, um grande mapa mundo em papel. Philips Commercial Map of the World, 1985. A União Soviética imponente e dominante, todas as manhãs, de Kiev a Valdivostok, de Leninegrado a Estalinegrado, outro tempo, ali parado mas vivo. Ninguém se lembrou de mudar de mapa. Talvez ninguém queira, acreditar. Alguém corajoso, com uma caneta, incluiu a Cachemira paquistanesa como parte indiana. Entre Popper e Lakatos, depois de Morgenthau e Platão, antes de Kautilya e Waltz, durante Caste System in India e Gandhi's Swaraj, o mapa esvoaça a cada corrente de ar que assola a sala, lembrando-me que também estou ali, ou aqui, que somos uma mancha amarela, ou vermelha, pouco importa, um pedacinho do destino ao sabor do vento.

terça-feira, 21 de setembro de 2004

Mastigar e Digerir a Índia, 2002 (Fragmentos III)

No comboio, tenho que partilhar uma cabine com um casal indiano recém-casado em Goa, e isso por 26 horas. Tipicamente, as perguntas chovem, sobre a minha família, o nome do meu cão ou a população da minha aldeia em Portugal. Vou dando respostas automáticas e, com habilidade misturada com arrogância, vou habilmente abrandando o ritmo da conversa assim como abrandamos uma bicicleta sem travões. Umas horas depois do início da viagem a comunicação é já nula, e manter-se-á assim até ao fim da viagem, tal como eu o desejava. Sem ser hiperamável nem arrogante posso agora ler com calma e ouvir a música do meu discman.

quinta-feira, 16 de setembro de 2004

Estou ligado ao mundo

Desde hoje tenho ligação Internet em casa. Sinto-me, finalmente, um luso realizado em terras delienses. Posso anunciar que me encontro settled. Ich bin ein Deliense.

Escrevi a semana passada, na minha coluna semanal no Goan Observer, algo que pode eventualmente interessar alguns de vocês, sobre a lusofonia e a CPLP. Leiam aqui.

quarta-feira, 15 de setembro de 2004

Jogos olímpicos

Na senda do orgulho ferido indiano que analisei anteriormente, faz sentido observar a cobertura que a imprensa indiana deu aos Jogos Olímpicos. Para rematar desde já a Índia para a cauda das caudas, o país ficou em último lugar na classificação que analisa os desempenhos dos países em relação à sua população. Uma medalha de prata na modalidade de tiro foi o que um militar indiano conseguiu nos jogos desportivos mais importantes do globo.

Os jornais passaram semanas a publicar cartas de leitores, editoriais e colunas de opinião sobre o assunto, reflectindo a profunda falta de confiança e insegurança complexada dos indianos, até neste pacífico capítulo desportivo. Tudo rodava à volta da interrogação geral How does a nation of one billion people just achieve one silver medal in the Olympic Games? Países como a Lituânia, o Sudão e o Luxemburgo acabaram à frente desta auto-proclamada futura superpotência mundial.

Contudo, o mais curioso foi observar a construção e propaganda nacionalista à volta do desempenho desportivo. Os jornais de referência chegaram a publicar títulos como "Go get them George!!" na primeira página, seguindo a linha britânica da imprensa nacionalista e trauliteira. No caso do salto em cumprimento feminino, houve uma indiana que chegou à final. Nos dias anteriores à final os diários vinham infestados de páginas inteiras sobre a atleta, apresentando-a como uma atleta de nível mundial com grandes possibilidades de trazer uma medalha para Nova Deli. A questão foi amplamente politizada com comentários de políticos na esperança de retirarem dividendos de um potencial sucesso.

Mas será que todos são cegos neste país? Ou a febre nacionalista é assim tão poderosa? A atleta, Anju George, tinha um recorde pessoal inferior em mais de meio metro (!) em relação a quase todas as outras finalistas. A prova que a táctica funciona, é que até eu, confrontado com os números, acreditava que a atleta teria mesmo hipóteses e cheguei a comentar o facto positivamente com colegas indianos. Só reparei no ridículo quando um amigo francês comentou o assunto incrédulo. Anju ficou em última.

Deliciem-se com estas cartas ao editor no The Hindu, jornal de maior referência na Índia (ênfases meus):

"Sir, besides acquiring physical fitness, our sportspersons need to get mentally though. We had a number of clear near misses at the Athens Olympics with some of our participants finishing within the top eight." Sohan G John, Allappuzah, Kerala

"Sir, India's performance should not surprise us because as a nation we lack pride. We also have the uncanny knack of drowning the sorrow monumental defeats in the ocean of rejoicing we do for the tiniest of victories. (…) but let us not get intoxicated by this victory that we cease to feel the pain of our much larger defeat." S.A.R. Adil, Bangalore

"Sir, Unless we reach the top 10 in the medals tally we should not even think of organising the Olympics (O Governo indiano pensa numa candidatura). Going by our performance of a medal every four years, it should be around 500 years from now."

segunda-feira, 13 de setembro de 2004

Mastigar e Digerir a Índia, 2002 (Fragmentos II)

Passo a grande velocidade no autocarro. Na berma, um objecto volumoso e escuro. As minhas narinas inalam um cheiro pestilento. Reconheço um búfalo de água indiano – basicamente uma vaca - em avançado estado de decomposição e uma dúzia de gralhas. Com os seus bicos afiados esventram a carcaça. Os intestinos, espalhados pela estrada, são esmagados pelo pneu do autocarro em que sigo. Passo a respirar uns segundos pela boca e viro para a página dois do jornal.

I'm sorry

Suhail. É o meu bom amigo, com o qual fiquei no ano passado no quarto, bem como desta vez, na minha primeira semana à procura de casa. È de Kerala, Sul da Índia, fala mal inglês, tem um nariz grande, cabelo e barba aparada, está a tirar o doutoramento em Arabic literature. Descobri que tem 30 anos. É a pessoa mais amável e dedicada que jamais conheci. Não acredito que possa fazer mal a uma mosca.

Mas ontem de manhã, num intervalo de aulas, a Flora, a tal filha de diplomata francês, contou-me que aceitou a boleia de mota dele, depois de virmos de uma festa, de madrugada.

(chegam de mota, ela desce sem o tocar e por isso quase que cai)
So, here we are .
Yes, thank you for bringing me. See you tomorrow.
No problem, it was a pleasure for me.
Ok, thank you.
I would like to learn French.
Oh, nice.
Can you teach me?
Yes, perhaps, but I think Emeric is better, because you can teach him Hindi in exchange.
No, I want you.
(silêncio)
I will take you into your house.
Oh, no …My mother is inside sleeping.
We should go travelling one day.
Yes, we can talk to the others.
No, only you and me. What do you think?
I don't know, my parents will not allow me.
Or we can go, now, to a bar or club, or my room. Let's go.
No, thank you. Bye bye. (afasta-se e atinge a salvadora porta de casa)


A situação descrita assim até pode parecer engraçadas e cómica. Mas isto passa-se às três da manhã numa rua deserta no Sul de Deli. Uma amiga da Flora, sueca, foi quase violada por um taxista ainda há poucas semanas. Claro que é um caso extremo, mas as raparigas e mulheres de pele branca, e as mulheres em geral, diga-se, têm uma vida extremamente complicada na Índia. São confrontadas com uma constante intromissão na sua esfera privada e com assédios repetitivos.

Quando fomos com a Camille, outra francesa branca, para o mercado de Old Delhi, ela queixava-se de cinco em cinco minutos de subtis e "acidentais" encontrões e apalpões e fomos forçados a partir. As minhas colegas de turma, mesmo as mais liberais, só atendem números que conhecem.

A Flora queixou-se a mim, sendo eu amigo dele. Eu disse que não conseguia acreditar, mas também não podia negar. Pensei como deveria agir, mas o próprio Suhail veio logo a minha casa nessa noite, estava eu a jantar. Não poderia imaginar cara mais envergonhada e submissa. A barbinha muçulmana e o nariz em forma de batata despontavam confusamente.

Depois de longos minutos desagradáveis de conversa geral, lá desembuchou e balbuciou desculpa depois de desculpa, I was just trying to be nice, I should have known this would create problems, you are my friend and she being your friend I only wanted to be nice to her. Don't think I am bad. I'm sorry. E eu sei que sim, que tudo não passou de um microchoque cultural entre a complexa sexualidade indiana na confusa cabeça de um solitário Suhail que nunca beijou uma mulher e a ofuscante pele branca feminina, tão apetecível, tão vulnerável.

quinta-feira, 9 de setembro de 2004

Mastigar e digerir a Índia (Lisboa, 2002)

Parto deste fim-de-semana para Amritsar, numa visita ao Golden Temple dos Sikhs (vide foto no topo), e ao exponente do nacionalismo radical e ultrapassado a que assistirei na fronteira indo-paquistanesa de Wagh. Sobre esta mini-viagem, com colegas da JNU, escreverei na segunda. Deixo este meu escrito de 2002 para se entreterem.

O típico turista ocidental viaja para a Índia parte em busca de uma terra mítica. Para muitos portugueses nem se põe sequer a hipótese de partir para esse canto, com medo das doenças, da criminalidade ou do clima, há de tudo.

Depois há aqueles aventureiros, alternativos, que apostam forte no relativismo cultural. Saem de Portugal frustrados com o consumismo capitalista, com a falta de amor ou com o governo de direita.

O problema é que voltam passado uns tempos, e, não querendo dar o braço a torcer, mitificam ainda mais a Índia, retratando com flores e cores tudo o que viveram, e esquecendo tudo o que de feio e horroroso por lá viram.

Imbuídos do seu espírito subjectivista e relativizador vão engolindo tudo com o que são confrontados na Índia, em vez de o mastigarem e o digerirem. Voltam com dores de barriga, mas negam-no, para salvarem a honra.

Como aquele meu amigo alemão que orgulhosamente disse que na Índia viveu como um indiano, comendo tudo e em todo o lado, incluindo nas barraquinhas de ruas, porque em Roma sê romano, adiciona com um sorriso superior. Mais tarde, numa frase murmurada, conta que teve um problema de estômago, tendo sido evacuado de emergência da Índia e tendo depois estado internado alguns meses num hospital alemão.

Para mastigar e digerir o que vemos e o que vivemos é preciso reconhecer que o que vemos e vivemos ali não é o que vemos e vivemos normalmente aqui. Que algo de diferente se passa. Que necessariamente estamos preconceituados e limitados pelas normas socias com que fomos educados ou com que fomos confrontados no passado. Obviamente que todos gostaríamos de ser racionais e frios de modo a dispensar preconceitos e juízos subjectivos.

No entanto, a nossa subjectividade normativa e social é impossível de eliminar. Não podemos aspirar a algo impossível. Nem isso é desejável: perderíamos a nossa esência humana e social, passando a robots mecânicos e meramente registadores de factos e realidades.

Assim, só nos resta enquadrar e domar essa nossa subjectividade. Estarmos conscientes dela, identificá-la sempre que ela aparece no palco (na nossa cabeçinha). Ignorá-la é impossível e quem o tenta é necessariamente desequilibrado.

O tal típico ocidental maravilhado na Índia tende a relativizar, a aceitar sem questionar (sem mastigar). Prefere muitas vezes olhar para o que acha que deve olhar e ignorar aquilo que não é suposto ver ou conhecer. E, mesmo que olhe para o que não deve olhar, relativiza-o e contextualiza-o. Isto é, aceita-o como sendo inquestionável porque faz parte de outro quadro normativo ou social que não é o seu. Recusa-se a questionar e a avaliar porque acha que não tem o direito de o fazer.

Obviamente que, ao voltar para o seu ninho, prefere mostrar algo de romântico. As partes mais chocantes do seu álbum fotográfico - as que resistirem à censura pela mão que orgulhosamente o folheia - são apresentadas de modo cómico, ou romântico, fugindo a uma interpretação e confrontação mais intensa. “Olha esta vaca no meio do lixo! Sabias que é bom elas andarem na rua porque comem o lixo e mantêm tudo limpo?”.

Eu tento não fugir a essa confrontação. Entre o simplismo do turista que se recusa a ir à Índia ou aquele que só lá permanece fechado nos hóteis de 5 estrelas, e o suposto turista informado que viu a “verdadeira Índia”, escolho uma via intermédia. Nesta minha última viagem à Índia acho que esta via deu os primeiros frutos.

Se por essência nunca fui um relativista subjectivo que se recusa a mastigar, por outro lado, tudo o que antes mastigava sabia muito mal e era obrigado a cuspi-lo, rejeitando-o. Talvez ainda o rejeite agora, talvez o que vejo, sinto e vivo na Índia tenha um gosto pior do que nunca, mas agora sinto-me mais capaz de o mastigar, de o engolir, e, acima de tudo, de o digerir. Assim, a longo termo, até sabe bem.

Mastigar e Digerir a Índia, 2002 (Fragmentos I)

Hora de refeição no comboio. Servem um arroz numa forma de alumínio. À minha esquerda e direita segue-se um coro de arrotos. Alguns passageiros elevam-se alguns centímetros dos bancos para libertarem os gases intestinais. Sonoramente o ranho é aspirado pelas narinas. Aproveito para limpar as unhas dos dedos do pé e atiro a tigela de alumínio e os restos pela janela.

quarta-feira, 8 de setembro de 2004

Nada funciona

É claro que há diversas explicações para tal, mas a realidade é que nada funciona neste país. Ou, pelo menos, é essa a minha impressão, partilhada por muitos outros estrangeiros. Lembro-me de lançar um riso sarcástico quando a Flora me contou que a mãe dela não trabalha porque está sempre ocupada a tentar arranjar e consertar alguma coisa ou a tratar de papelada. Compreendo-a agora perfeitamente.

A minha nova bicicleta, por exemplo. O Emeric, colega francês, e eu, comprámos duas bicicletas de montanha novinhas em folha. Negociamos, pagamos e partimos. Menos de 200 metros depois, com um intervalo de poucos segundos, saltaram as correntes das duas bicicletas. Depois de três dias, o primeiro furo. Ou melhor, quatro, tendo em conta os remendos que me fizeram na câmara de ar.

Assinei um contrato com uma operadora de telemóveis, Idea. Enviaram uma pessoa para verificar se eu morava mesmo onde moro. Ligaram-me 3 vezes a confirmar o meu endereço postal para enviarem a factura no fim do mês. E eu já adivinhava o que viria a acontecer, porque a factura nunca chegou e vou fui forçado a correr hoje para a loja, pagar o devido, porque a partir de amanhã seria aplicada uma "late payment tax".

Abrir uma conta via ICCR, a instituição cultural do Governo Indiano que gere a minha bolsa. Preenchi os formulários todos e prometeram-me que iriam enviar o cartão de débito e mais impressos por correio num prazo de poucos dias. Ainda não chegaram, nem nunca chegarão. You have to come personally, it seems there was a problem with your address. Come here on Wednesday. E o local para onde me encomendam fica a meia hora de táxi, e vou ter que faltar a aulas.

Uma das razões directas é a falta de precisão e rigor. Não há endereços postais exactos, por exemplo. Na teoria existem, mas são deturpados com a imprecisão de landmarks, opposite to, next to, near, behind ou after. O que mina desde já o rigor. Em vez de concentrar a informação e a precisar e apurar, na Índia prefere-se uma amálgama solta de dados vagos e meramente indicativos, na esperança que a imperfeição do particular seja superada pela hipotética perfeição mediana do conjunto. O que tem as suas vantagens no plano sociológico e filosófico, de que falarei um outro dia.

Claro que há causas mais gerais, como o enorme volume populacional que leva as estruturas mais apuradas do Ocidente a falharem miseravelmente perante a força do número. O clima também contribui para o imperfeito funcionamento dos aparelhos eléctricos e da maioria da tecnologia. É sabido que carros com fecho centralizado eléctrico e janelas automáticas são evitados na Índia, pelo simples facto que deixam de funcionar com as primeiras húmidas chuvas de monção. O subdesenvolvimento indiano e a consequente fraca qualidade dos produtos é obviamente outra razão. Nada resiste.

Mas, perante utilizadores que batem ao ritmo de segundo na tecla ENTER do PC quando este está a iniciar, duvido que haja tecnologia que resista. Cheguei a assistir a um episódio onde um cibernauta visivelmente desconhecia que as páginas na Internet demoram alguns segundos a abrir.

Assim, carregava em média 5 a 10 vezes em cada link, reforçando o processo com mais dez batidelas no ENTER. Para além das centenas de janelas que abriu em poucos minutos, a consequência foi obviamente a quebra do processador. Pacientemente, esperou, reiniciou, e continuou com a mesma estratégia. Reiniciou o computador por três vezes, até um amigo meu intervir. Nada resiste, nem nada funciona.

terça-feira, 7 de setembro de 2004

Orgulho protonacionalista

A Índia, como civilização colonizada durante vários séculos, como original civilização que afirma nunca ter sido colonizadora, como nação embrionária com pouco mais de 50 anos, como amálgama de dezenas de regiões etno-linguísticas diferentes, tem, é óbvio, um complexo de inferioridade.

Isto reflecte-se num nacionalismo exacerbado e na fuga para a frente, em direcção a uma Grande Índia, nuclear, soberana e independente, ready for pay-back, como gostam de dizer alguns pensadores mais corajosos que leio no The Pioneer, jornal ligado aos nacionalistas hindus do BJP.

Em vez de vos chatear com os perigosos estudos pós-coloniais, nada melhor do que um exemplo. Tentem, como estrangeiro, andar de comboio. Como este país não e lá muito pequeno, as viagens demoram dezenas de horas, senão dias (o Trivandrum Rajdhani, por exemplo, liga a capital do Kerala a Delhi numas super-speed 48 hours). O que obriga ao penoso acto de comunicar com os vizinhos.

Depois das introduções bem-educadas, vem a pergunta fatal, acompanhada de um largo sorriso que pretende pôr a vítima respondente no à-vontade que será a sua sina mortífera. So what do you think about India?

Caso o turista use a conjunção "but" na resposta subsequente, a hostilidade entrará em cena para o resto da viagem. Espera-se do estrangeiro uma resposta vangloriadora da Índia, em toda a plenitude. Já tentei várias variações nas respostas. Mas nem os mais rasgados elogios, durante quinze ou vinte minutos, retiram o brilho venenoso a qualquer subsequente "but" de fragmento de segundos que eu inclua educadamente, ou uma alusão a qualquer elemento que potencialmente deixa transparecer um descontentamento com a Grande Índia.

Estará então aberta a arena da discussão que me remete para o cliché do ocidental chauvinista e neo-colonizador, o jovem novo-rico emigrante indiano, o culturalista que recusa ver a especificidade do modelo indiano.

"And where do you come from?"
It was the Indian question. I had been answering it five times a day.
"And what do you think about or great country?"
It was another Indian question; and the sarcasm had to be dismissed.
"Be frank. Tell me exactly what you think."
"It's all right. It's very interesting."
(…)
And when we got back into the bus I found that the chemistry teacher had changed seats with his wife, so that he would not have to continue talking to me."


Excerto de "Romancers", in An Area of Darkness, V S Naipaul, 1964