terça-feira, 28 de fevereiro de 2006

Imagens de Deli: Miúdos num casamento

Regateando (adenda)

Há, no espectro oposto, os turistas que, na frustrada tentativa de se quererem integrar ao máximo e “ser como eles”, negoceiam cada Rupia como se fosse um caso de vida ou morte. Para além de já o próprio objectivo máximo de integração espelhar uma profunda crise de identidade, grande insegurança e presudo-correcção, não há outro termo a não ser “patético” para descrever a forma excessiva e enfática (roçando o mimetismo) com que encenam os diálogos, gestos e estratégias de negociação autóctones. Vivem obcecados com a ideia de que tudo e todos os tentam enganar, que cada Rupia vale uma fortuna. Esquecem-se que uma Rupia pode, de facto, ser uma fortuna – mas não para eles, pelo contrário. A obsessão leva-os aliás ao radicalismo ridículo de estarem a discutir com um pobre taxista de triciclo durante vários minutos duas ou cinco Rupias de troco, como se isso fosse importar alguma coisa na carteira chumaçada de notas e cartões de crédito internacionais e nas contas finais que lhes permitem exclamar com alegria “Ah, c’était un super bon marché, l’Inde” e depois gabarem-se na padaria ao comprar baguetes. Este comportamento defende-se logicamente com dois dos argumentos já apresentados – o mito da obrigatoriedade da negociação e o do perigo da inflação dos preços locais.

domingo, 26 de fevereiro de 2006

Imagens de Deli: Casamento


A noiva Sheila (alcunha, ao meio) uma das minhas colegas de turma, na sua festa de casamento há poucas semanas atrás. Tudo arranjado, é claro, conheceu o marido poucos meses antes, viu-o umas poucas vezes, mas sempre na presença de familiares. Um casamento de arromba, entre mil e duas mil pessoas presentes, entra quem quiser. As minhas observações pessoais ficam para um outro dia. Hoje ficam com a imagem.

Regateando

Uma das coisas que mais fascina (e intimida) os ocidentais que vêm à Índia é a volatilidade dos preços, o processo de negociação e, paradoxalmente, a fraude que a cada instante os ameaça vitimar.

Nascem assim mitos sobre supostos recordes batidos a regatear. Por exemplo, eu até recentemente estava convencido de que tinha feito um negócio da China quando, há uns anos, de mochila às costas a viajar pela Índia, tinha comprado um conjunto de pequenos elefantes coloridos em pedra em Amber, perto de Jaipur, no Rajastão. Enquanto subia por um íngreme caminho rochoso e tórrido, encosta acima, em direcção a um forte, um vendedor tanto insistiu que acabei por comprar o conjunto por dez vezes menos o preço inicialmente apresentado pelo sujeito, porque aquilo parecia tão barato e afinal uma tão boa história para contar aos netos que era impossível resistir.

Fui vivendo nessa ilusão até ao dia em que um amigo meu me mostrou o mesmo conjunto de elefantezinhos e se gabou todo embevecido que tinha reduzido o preço em quinze vezes e os tinha comprado por um preço ainda mais irrisório do que o meu. Tendo ainda por cima em conta a subida galopante de preços que se viveu neste país nos últimos anos, imaginam que de um momento para o outro parte do meu pequeno mundo ruiu, sem misericórdia.

Nascem também mitos sobre estrangeiros que foram defraudados. É aliás uma das conversas preferidas dos mochileiros na Índia. Logo que estes se encontram, trocam nomes e proveniência nacional, e a conversa orienta-se para esse tema, todos convencidos de que conheceram pessoalmente o japonês mais gatunado na história do turismo na Índia, que foi praticamente raptado logo à chegada ao aeroporto em Nova Deli, forçado a dormir num quarto pestilento enquanto lhe debitavam 500 dólares do cartão de crédito, empurrado na manhã seguinte para um autocarro público e levado para a Caxemira, que, é-lhe dito com grande alarmismo, é o único local seguro de momento no país, porque está iminente mais uma guerra indo-paquistanesa. Claro que nenhum dos mochileiros se lembra de partilhar as diversas histórias em que ele mesmo foi enganado, dando-se conta ou não. Isso fica remetido para a intimidade, deitado para o emergente amontoado de frustrações politicamente incorrectas.

Nascem também mitos como o de ser obrigatório (ler as sílabas enfaticamente e pausadamente) regatear-se na Índia, sob pena de ser mal-educado e ferir as susceptibilidades autóctones. Presumo que este mito tenha origem nos países árabes, mas a verdade é que é simplesmente uma legitimação simpática para o que é a dura realidade do terreno. Porque só regateia quem não quer pagar mais. Ninguém é obrigado a negociar. Só se discute se o preço não convém, ou simplesmente se não parece merecer a mercadoria pela qual é demonstrado interesse. Não são poucos os indianos que conheço que se recusam a regatear – novos-ricos ou ricos, na sua maioria – por não terem paciência nem tempo para tal. Nunca vi um vendedor nessa ocasião exclamar com uma expressão ofendida “que falta de respeito, vá comprar com outro que venda mais barato!”.

É mais o “white man’s burden”, o medo de parecer prepotente, de chegar e comprar a aldeia inteira, crianças incluídas. Mas, perante a realidade, que não passa de uma dura selva ou de um faroeste em que só sobrevive o mais apto, não há que ter medos nem mitos, salva-se só quem puder e quiser.

Finalmente, expostos perante a argumentação supra, muitos benevolentes pseudo-preocupados com o nefasto impacto do turismo sobre a economia local, contrapõem que é imperioso regatear e pagar sempre que possível o preço que os locais pagam, sob pena de inflacionar os preços e tornar certos serviços proibitivos para os autóctones. Tal acontece, por vezes, mas na grande maioria das realidades indianas que conheço, é simplesmente mais um mito. Um bom indiano sabe distinguir um farangi de um desi, isto é, um branco de um castanho.

Mesmo em locais onde o turismo tem tido um impacto tremendo, o caso de Goa ou de Dharamsala, há duas economias paralelas, uma para os estrangeiros, outra para os nacionais. Para quem começa a arranhar o vernacular, expõe-se o tremendo fosso que separa as duas, ouvindo um taxista pedir um certo preço proibitivo a um turista para segundos depois, caso a presa estrangeira não o tenha contratado, aceitar sem piscar os olhos uma oferta mínima de um habitante local.

Há então os que argumentam que pagam mais porque não se importam, porque é tão pouquinho para “nós” e tanto para “eles”. Embora pense que esta atitude paternalista tenha um cunho de arrogância, credito-a com o facto de assumir pelo menos a parcial incapacidade e impotência de lidar com o mundo da negociação na Índia. Neste caso, “pagar mais mas finalizar o processo com maior rapidez” é visto como uma solução confortável para todos os que – assumindo-a – querem escapar à complexidade e conflitualidade ilesos e incólumes. Aceito, sublinhando a franqueza.

O problema destes mitos todos é que confundem a maioria dos turistas bem-intencionados, ainda por cima num país tão confuso como o é a Índia, em que a cada esquina nos pegam no braço e nos querem convencer que têm em mãos o negócio do século, só e especialmente para nós. Já com a mochila às costas, o peso da pela branca e do estatuto económico, mas especialmente do que se quer o “politicamente correcto” é tremendo e só leva a que os visitantes sejam esmagados e triturados pelas hábeis máquinas indianas que confrontam o turismo nessas esquinas um pouco por todo o país. Aqui e acolá os hóspedes dão sinais de resistência, mas a verdade é que sentem tremenda frustração que se vai acumulando e, de repente, semanas, meses ou anos depois de iniciarem a viagem (que pode ser a de uma vida) irrompe tudo que nem um vulcão, produzindo cenas patéticas ou chocantes, ou mesmo os dois, quando a última gota faz transbordar o copo da paciência politicamente correcta.

Deixem-me dar mais um exemplo. Numa viagem que nos levou de autocarro por três dias para Ladaque, no estado de Jamu e Caxemira, iam uns poucos estrangeiros aventureiros. A viagem, como devem imaginar, foi feita em condições terríveis, tocando os 5000 metros de altura, com temperaturas ardentes durante o dia e geladas de noite. De poucas em poucas horas era obrigatório sair do autocarro e dar os detalhes dos passaportes, e alguns trabalhadores indianos as autorizações de trabalho ou de residência (o estado tem restrições mesmo à imigração doméstica). Formavam-se então longas filas e esperavam-se longos minutos. Já no último dia de viagem, um francês de meia idade, que tinha passado os dias e as horas anteriores a louvar a espiritualidade indiana, a simpatia, paciência e franqueza dos habitantes do país, a necessidade de os “brutos ocidentais” compreenderem e adaptarem-se ao local, encontrava-se também numa dessas filas quando um sujeito indiano ultrapassa a fila inteira e entra para a tenda militar.

Todos os passageiros, nem que olhando de relance, sabiam que se tratava de um dos motoristas, afinal ele já nos conduzia há dois dias. Mas o francês, de repente despojado de toda a retórica, lançou-se para cima dele, agarra-o pelos ombros e por entre cuspo e gestos ameaçadores grita-lhe num francês obviamente chinês para o indiano, acusando-o de violar as elementares regras de boa-educação e não sei o que mais. Foram precisos vários minutos para o acalmar e ele lentamente voltar a si, só para me confidenciar mais tarde que “lhe tinha saltado a tampa” porque o tinham já ultrapassado dezenas de vezes em filas, um pouco por todo o país que tinha visitado e isso o irritava profundamente.

Sim, eu sei, duas perguntas vos devem afligir. Como então sobreviver na Índia regateando e o porquê destas linhas. Quando à primeira, assim em breves linhas, não me resta nada a não ser recomendar naturalidade e libertação de mitos e complexos. É preciso olhar o inimigo nos olhos, e nos negócios turísticos cá da terra todos são inimigos até prova em contrário (rara). Contar espingardas e ir para a guerra. Ou assumir a opção de não querer conflitualidade, mas pagar o preço devido por isso (em Rupias), numa estratégia militar de recuo em que a concentração reside na contenção dos danos e maximização noutras frentes (gozar o turismo mais essencialmente, descansadamente). Finalmente, mesmo que não tenham amigos locais indianos, pedir a transeuntes, feirantes rivais, conhecidos ou desconhecidos etc. que regateiem em vosso nome, embora haja sempre o risco de manterem o preço alto e combinarem uma percentagem para eles mesmo. Mas, regra geral, e na maioria do território, as pessoas gostam de ajudar e farão o papel de bom samaritano a intérprete cultural e intermédio.

Quanto à segunda questão, sobre o que me motivou a escrever sobre o tema, nada mais do que uma ida ao mercado, esgotado e desnorteado, depois de um dia de trabalho. Perante os vendedores de vegetais e frutas com que normalmente negoceio sempre um pouco e que já me conhecem bem, hoje baqueei. Sem paciência nem energias, fui escutando e acedendo impávido aos estonteantes preços que me pediam por cem gramas de uvas ou um quilo de batatas. Mas hoje recusei-me a entrar no teatro das negociações, estendi-lhes as notas e recusei observar a balança ou controlar o troco. Decidi que hoje vingar-me-ia deles virtualmente, a longo termo, aqui, no teatro cibernético.

sábado, 25 de fevereiro de 2006

EUA e Índia (Expresso)

Nota: Em cima da hora, o meu texto teve que ceder a temas mais importantes (é assim mesmo, o mundo dos jornais) e foi convertido e condensado numa "Breve", embora com alguns erros. E, em anexo, deixo-vos o artigo original, não-publicado e que aproveitei para editar ligeiramente.


EXPRESSO, Edição 1739, 25.02.2006, Internacional

Uma nova «paisagem estratégica»

O PRESIDENTE norte-americano inicia na próxima quarta-feira uma visita de dois dias à Índia (a que se seguirá outra ao Paquistão), cujo objectivo é «colocar o seu programa nuclear civil no âmbito da legitimidade internacional e fortalecer a confiança entre as duas nações», segundo as suas palavras. A verdade é que com ou sem anúncio público do acordo de cooperação nuclear (a adesão da Índia ao Tratado de não Proliferação Nuclear), a visita de Bush é a primeira em três décadas, o que diz muito sobre a crescente importância que os dois países dedicam um ao outro. Uma aliança entre ambos pode, de facto, moldar uma nova «paisagem estratégica».

Tony Jenkins, Nova Iorque, com Constantino Xavier, Nova Deli

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Relação emergente
Constantino Xavier, correspondente em Nova Deli
(não-publicado)

Com ou sem anúncio público do acordo de cooperação nuclear, a visita de George Bush à Índia, a segunda de um presidente norte-americano em quase três décadas, simboliza a crescente importância que os dois países têm dedicado um ao outro.

Do lado norte-americano, Bush parece disposto a reconhecer a emergência militar e diplomática indiana, tendo em conta a instabilidade no Paquistão islâmico e a necessidade de conter o poderio chinês na Ásia. “A Índia é importante para a nossa segurança económica e nacional”, disse o presidente norte-americano esta semana em Washington, referindo-se á Índia como “um líder global e um bom amigo”.

Mas a aproximação indiana tem atraído especial atenção por assumir tons de ruptura, tendo em conta que o país foi durante o período de Guerra Fria um dos líderes do Movimento Não-alinhado, hostil aos Estados Unidos, e o facto de sempre ter mantido boas relações com a União Soviética. A Rússia permanece o seu principal parceiro militar.

Visando agora reflectir o seu poderio económico global na diplomacia internacional, a Índia está no entanto disposta a cortar com o passado. Do novo acordo com os Estados Unidos deverá constar a abertura do seu programa nuclear a inspecções internacionais, bem como a separação do seu programa civil e militar, tudo para aceder à tecnologia norte-americana e ver reconhecida a nível internacional a sua capacidade nuclear.

A visita conta no entanto com a ferrenha oposição dos partidos de esquerda que acusam o primeiro-ministro Manmohan Singh de “sucumbir ao imperialismo norte-americano e esquecer a história”. Os boicotes anunciados levaram mesmo Bush a optar por não discursar no parlamento em Nova Deli, ao contrário do que fez o seu antecessor Bill Clinton, em 2000. Para Manosh Joshi, membro do Conselho Consultivo para a Segurança Nacional da Índia (NSAB), a nova orientação diplomática não é tão dramática. “A Índia tem vindo a reposicionar-se na diplomacia internacional há já muitos anos e o 11 de Setembro só veio acelerar o processo”, referiu ao EXPRESSO.

Para o ex-diplomata e presente editor do diário Hindustan Times, a relação emergente com Washington não choca com a ênfase que Nova Deli tem colocado num mundo mais multilateral e multipolar, perseguindo a política “Look East” em relação à Ásia, ou apostando no eixo “Sul-Sul” com o Brasil e a África do Sul (IBSA). “A Índia, quer olhe para o Oriente ou o Ocidente, encontra os Estados Unidos sempre presentes e a visita de Bush poderá ajudar a cimentar a sua emergência na região”, refere, aludindo também aos crescentes interesses de Washington na região.

A caminho de Leh

Pouco tempo depois os Himalaias voltaram a impor respeito aos três autocarros que seguiam em caravana. Logo à saída de Keylong, e estando ainda numa capital de distrito e a pouco mais de 3000 quilómetros de altura, um riacho tinha levado consigo a pequena ponte e os autocarros só com dificuldade e muitas manobras malabaristas lá conseguem atravessar as turvas águas – os passageiros são obrigados a atravessar a pé, claro.

Mas o pior estava reservado para uns cinco quilómetros depois, onde o lamaçal a que chamam National Highway tinha simplesmente desabado, nada mais restando do que a nua e íngreme face da montanha à esquerda e uma impressionante ravina, caindo por quase duas centenas de metros, do lado direito.

Passar-se-iam mais de oito horas até que o trânsito voltasse a poder circular. E só depois de dinamitaram a montanha, trazerem lagartas especializadas do Exército e supostamente controlarem a segurança. Dos dois lados já se alinhavam centenas de veículos quando finalmente somos os primeiros a passar, no papel de cobaias rodoviárias. O sol começava a aquecer a chapa dos autocarros, o pó da pista a cobrir os poros e a invadir as narinas.

É então, já a 4000 metros de altitude, e envolto de paisagens desérticas, vales secos imensos envoltos de cumes de neve, numa paisagem lunar fantasmagórica, pontuada somente por ocasionais batalhões militares que têm como responsabilidade manter a estrada transitável e também por um ou outro grupo de pastores nómadas e os seus rebanhos de cabras e outros animais de montanha, que um dos três autocarros nos abandona, o seu motor quase em chamas, os motoristas deitando-lhe água.

Lentamente, os dois autocarros restantes seguem viagem, já sobrelotados por algumas pessoas se terem transferido. A estrada vai subindo, sem perdão, o ar afina-se, o fim do mundo parece mais próximo do que nunca. Não há sinal de vida, a não ser um jeep turístico mais rápido que nos ultrapassa, ou bidões de gasolina abandonados ao longo da estrada, ou até um ou dois camiões capotados lá em baixo num dos vales.

Como seguimos à frente, de repente, o nosso motorista exclama e anuncia que passámos a escalar os Himalaias sozinhos. Não há sinal de vida do segundo autocarro.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2006

Hollywood & Bollywood

Will Smith na Índia. A lenta transformação de um H num B. Bem-vindos à afirmação do soft-power indiano.

Respeito

Nas aulas de M.A., equivalente a uma pós-graduação ou a um mestrado em terras ocidentais, aqui na Jawaharlal Nehru University, quase sempre que um professor entra na sala, há uma maioria de estudantes que se levanta de pé, em sinal de respeito, até que o mestre faça sinal para os aprendizes se sentarem. A dimensão do comportamento varia de departamento para departamento e de professor para professor, mas, regra geral, vai sobrevivendo. E mesmo os estudantes estrangeiros têm adoptado este comportamento expressivo do respeito, ocidentais incluídos. De notar que a universidade é considerada um dos espaços mais liberais e progressivos da Índia, onde florescem os novos talentos e as novas ideias que irão orientar a Índia (e talvez o mundo) de amanhã.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2006

Obrigado pela gentileza

"Since we cannot throw our Muslims and Christians into the sea, we have to Indianise them."

K. S. Sudarshan, o carismático líder das forças fundamentalistas hindus Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), referindo-se às minorias religiosas na Índia, à sua reconversão e ao processo de indianização que advoga (Bharatiyakaran).

Chicken tandoori em risco

Já chegou a terras de Rudyard Kipling a famosa Avian Influenza. As empresas de catering que servem as companhias de aviação internacionais na Índia deixaram de oferecer o famoso chicken tandoori ou egg curry aos passageiros. É também o poder dos media e o reflexo da crescente modernização, ocidentalização e globalização da Índia: o que se passa num pequeno distrito a norte de Bombaim, afectando até agora poucas centenas de galinhas e dois indivíduos, tem efeitos quase instantâneas por todo o país. Milhões de pessoas deixam de consumir, os preços caem, as fábricas fecham e dezenas de milhares de pessoas da indústria aviária perdem o emprego, tudo num espaço de dias.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2006

(Re)abertura

Os que já são veteranos nestas andanças da vida em Deli e que a foram acompanhando desde Julho de 2004 terão certamente observado que o blog sofreu algumas mudanças gráficas nestes últimos dias. E observarão nos próximos tempos também mudanças de conteúdo, com mais actualizações, mais comentários, recortes e observações pessoais, sem deixar de explorar a minha fina e inexperienciada veia literária. Convido todos à leitura, mas em especial a comentarem, colocarem questões, desafiarem-me e corrigirem-me, fazendo uso das caixas de comentário... para que a minha Vida em Deli conte também com a vossa companhia.

Abanar de cabeças

Para quem anda a acompanhar esta minha vida em Deli, isto não vos soa familiar?

Quando, em Portugal, comentava a intenção de continuar os meus estudos na Índia, ouvia normalmente um "Isso não lembra nem ao diabo!" ou constatava um abanar de cabeça como reacção ao que eu acabara de dizer.

Tóxicos à procura de porto de abrigo (Expresso)

EXPRESSO, Edição 1738, 18.02.2006, Internacional

O país das piores condições

O NAVIO de guerra francês «Clemenceau», com centenas de toneladas de amianto a bordo, tinha como seu último destino a pequena cidade portuária de Alang, no Noroeste da Índia. A localidade é conhecida por albergar «um dos maiores cemitérios navais do mundo», onde aportam anualmente centenas de antigos petroleiros, porta-contentores e navios militares vindos dos cinco continentes.

As embarcações são tomadas de assalto por milhares de trabalhadores indianos que, sem qualquer formação ou equipamento de protecção, os desmantelam para reciclagem e produção de aço.

Durante todo o processo os trabalhadores, principalmente imigrantes sazonais vindos das regiões mais pobres da Índia, são expostos a grandes quantidades de amianto, chumbo, mercúrio e vários outros resíduos tóxicos que são depois incinerados ao ar livre, depositados no mar ou mesmo vendidos ao público.

Estudos calculam que um quarto dos cerca de dez mil empregados de Alang corre «sérios riscos de contrair cancro» e o próprio Governo estadual admite que quase 400 pessoas morreram desde 1983 em acidentes de trabalho e que a faixa costeira está hoje severamente poluída.

Alang não passa no entanto de um exemplo. 90% dos cerca de 600 navios transoceânicos abatidos anualmente no mundo inteiro são desmantelados em condições similares nos portos da Índia, do Paquistão, do Bangladesh e da China. De acordo com um relatório que a União Europeia publicou em 2004, o número de navios desmantelados entre 1994 e 2003 é de 4.658, 2.640 foram desmantelados na Índia.

Também no Oriente os interesses económicos falam alto. Embora a Índia tenha uma legislação ambiental bastante completa, nem sempre a aplica no terreno, sob pena de ver países concorrentes retirar-lhe a liderança no mercado. Os próprios protestos da Greenpeace foram condenados pelos sindicatos de Alang, que acusam os ecologistas de porem em perigo os seus postos de trabalho e toda a economia da região.

«Há que negociar urgentemente critérios mínimos a nível nacional e internacional e ter em consideração os vários interesses económicos, laborais e ambientais», refere Ravi Aggarwal, director da ONG indiana Toxics Link. Em especial porque o sector se encontra em franca expansão, avisa, em declarações ao EXPRESSO.

«As leis internacionais proibiram na década de 70 a utilização de amianto e de outros tóxicos na construção naval. Tendo em conta o tempo médio de serviço, mais de 3 mil navios construídos antes disso serão desmantelados até 2010», refere.

Constantino Xavier, correspondente em Nova Deli

domingo, 19 de fevereiro de 2006

A vida em Deli no Abrupto

Cópia do que enviei hoje (19/02/2006) e foi publicado no Abrupto, de José Pacheco Pereira:

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(JPP)

RETRATOS DO TRABALHO EM NOVA DELI, ÍNDIA

A máquina, instalada no meu campus universitário, tem um assistente a tempo inteiro, 24 horas por dia, 365 dias por ano, faça frio gélido ou calor tórrido em Nova Deli. São dois funcionários que se revezam, sendo que à noite estendem uma pequena colcha para dormirem em frente à máquina. Há diversas razões que explicam este factor humano.
Primeiro, há repetidas e contínuas avarias, especialmente devido ao clima, forçando a utilização manual (o empregado tem a chave de acesso no bolso). Segundo, é raro alguém ter consigo troco exacto para pagar em moedas os produtos expostos (devido à inflação dos preços).
Terceiro, embora numa zona universitária, muitos dos utentes não são suficientemente literados ou simplesmente não têm paciência para seguir as instruções. Finalmente, ao receberem o dinheiro em mãos, em vez de este ser colocado na ranhura, os empregados têm uma fonte de rendimento adicional, desviando uma percentagem para um copinho de papel que se encontra escondido dentro da máquina de café branca (ao meio), sem conhecimento da empresa gerente. Utilizei esta "vending-machine" por várias dezenas de vezes ao longo dos últimos meses, mas até hoje não me foi possível uma única vez efectuar uma transacção com sucesso sem interferência do empregado, pelas razões acima expostas, ou variantes similares.
(Constantino Hermanns Xavier)
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Imagens de Deli: Metro & Hanuman




Uma imagem (a primeira) simbólica da Nova Deli contemporânea: um viaduto do Delhi Metro, aqui numa secção elevada, com o gigantesco Hanuman Temple (em Karol Bagh) ao fundo, dedicado ao deus-macaco aliado do mítico Rama. O orgulho nacional, o Delhi Metro, é uma joint-venture público-privada indiana com forte participação japonesa e alemã (Siemens, aber klar!). É de facto uma obra-prima, com tecnologia de ponta, limpeza exemplar, qualidade garantida a todos os níveis, e, por isso, suplantando na minha opinião todos os metros que já conheci, à excepção do japonês.

Calcula-se que o Delhi Metro irá reduzir a entrada de autocarros suburbanos em mais de 20% (uns tantos milhares por dia) e reduzir ainda mais a poluição do ar numa cidade que há menos de dez anos ainda era considerada uma das mais poluídas do mundo. O início do processo de despoluição deu-se com um acórdão inédito do Supremo Tribunal, em 1998, obrigando todos os transportes públicos da cidade (rick-shaws incluídos) a circular com o CNG (Compressed Natural Gas), um combustível bastante menos poluente. Assim, comparado com 1997, os níveis de monóxido de carbono desceram 32%.

A segunda fotografia, no interior de uma estação, valeu-me uma reprimenda pública. Segundos depos de o meu flash ter captado a imagem, ecoou pela aparalhagem sonora uma voz autoritária em hindi, a dar instruções e localização para me confiscarem a máquina. Felizmente, lá fiz o papel de desentendido com os seguranças, pedi desculpas e pude ficar com a fotografia. Continua a ser proibido na Índia tirar fotografias de instalações militares, claro, mas também de aeroportos (esqueçam fotos de despedida!) e demais instalações públicas de "interesse vital para a segurança do estado". Resquícios do socialismo nehruviano e de paranóia soviética.

Mas o mais hilariante é mesmo observar os utentes que são confrontados com toda esta high-tech global. Os torniquetes são digitais, e há dezenas deles para escoar as massas delienses, mas cada um tem um assistente personalizado para explicar às pessoas como o utilizar, empatando o sistema e criando filas intermináveis. Mas basta lembrar-me da vergonha que ainda há pouco se passou (ou ainda se passa?) no Metro de Lisboa, para refrear as minhas críticas ao sistema indiano.

Há, no entanto, no Metro de Deli um muito bom exemplo que testemunha o choque da Índia tradicional com a modernidade e rápida mudança que o país vive. São as escadas-rolantes que elevam os utentes de volta às alturas caóticas, à realidade da rua. Basta colocar-se perto do início de uma dessas maravilhas tecnológicas e observar os dramas que se desenrolam à sua volta, naqueles primeiros metros de tapete metálico ainda nivelado que se transforma rapida e misteriosamente em grandes degraus. Trambolhões, quedas, deslizes, saltos monumentais, gritos de pânico, risadas nervosas, gargalhadas e choro incluído - tudo reflexo da confrontação dos populares com a emergência do seu país.

sábado, 18 de fevereiro de 2006

Keylong

Finalmente, ao fim de uma semana, anunciam a partida para a madrugada seguinte. Ensonados ainda, dirigimo-nos pelas quatro e meia e da manhã para a pequena ruela a que chamam main avenue e interstate bus stand. E, de facto, reina grande agitação, as pequenas barraquinhas do chá já abriram e as pessoas vão-se aquecendo à volta dos três autocarros verdes e brancos que preenchem a rodovia. Como fomos dos primeiros a ficar empatados aqui, e como procedemos logo à reserva para a continuação da viagem, conseguimos conquistar os nossos lugares devidos com pouca dificuldade, e sentamo-nos nos bancos de madeira forrados de uma capa sintética e encostamos as cabeças cansadas às tiras de alumínio que logo nos arrefecem a nuca.

Mas não é possível adormecer. Parece que há duas vezes mais potenciais passageiros que lugares disponíveis, embora haja três autocarros. Emergem então do silêncio madrugador pequenas discussões, um ou outro empurrão, uns vão ficando no corredor, de pé, outros descem e deverão esperar pelo próximo autocarro, talvez amanhã. Os motores arrancam, a chuva gélida alternada com neve vai caindo e, já a carcaça metálica se põe em andamento, vislumbro, por detrás da janela embaciada, a figura de um dos filhos do sadhu, encharcado, a tremer, olhando-me, e cobrindo-me com um sorriso quente, como que de despedida.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2006

Imagens de Deli: Srinagar



Certamente, se não fosse a sua ignóbil militarização, Srinagar seria uma séria candidata a Património Mundial da UNESCO. É uma cidade que tem todos os requistos e todas as aliciantes para nos apaixonarmos por ela. Ao sopé de um formoso e luxuriante lago, na margem de ums dos principais rios dos Himalaias, o Jhelum, envolta de um vale verdejante, frutuoso e fértil, rodeado de gélidos e imponentes cumes de montanha por entre os quais há pequenas passagens estratégicas que em tempos guiavam os mercadores dos planaltos indostânicos para a Ásia Central, do planalto tibetano para as civilizações de Harappa e Mohenjo Daro à beira do Indus, e vice-versa. Há, de facto, frequentes atentados à bomba e ocasionais tomadas de reféns, mas os turistas, conscientemente ou não, são normalmente deixados em paz, no conforto dos seus house-boats no Lake Dal, ou a explorar as labirínticas ruelas do bazaar. Considero a Jama Masjid, a mesquita central de Srinagar originalmente do séc. XIV, o local mais simbólico e impressionante, porque se distingue de todas as mesquitas que jamais vi (poucas em realidade, muitas no papel ou no ecrã), da Praça de Espanha a Istambul, de Tóquio a Goa, num estilo que nos parece querer provar a veracidade do mito de que Caxemira é a Suiça asiática. Os agudos ângulos que pontuam o seu telhado também, não sei bem porquê, me fizeram recordar as igrejas de traça germânica que pontuam as cidadelas e vilas alemãs da Europa de Leste, a Catedral de Brasov (Kronenburg), por exemplo. Embora o estilo oficialmente seja o indo-sarracênico, há, certamente, algo de inevitável europeu e ocidental em Srinagar, algo de intrinsecamente alpino, ou, no menos remoto dos exemplos, algo de profundamente central-asiático.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2006

A Festa

Quando os meus pais me arrastavam para as festas goesas naqueles restaurantes bolorentos às Janelas Verdes ou naquela barraca a que chamavam Casa de Goa nas Laranjeiras eu sentia-me sempre um pouco à parte. Logo que as mesas forradas de xacutis e cabidelas e demais petiscos eram afastadas do centro da sala ou do pátio e irrompiam das gargantas regadas de feni de cajú os primeiros cânticos em Concani, eu tentava escapar-me pela portinhola que, pelo menos nas Laranjeiras, ia dar a uma pequena horta com grandes abóboras. É que lá dentro começavam a dançar, jovens e crianças incluídos, bamboleando os pés, as ancas e as cabeças ao ritmo do gummot que alguém se lembrava de tirar do armário ao lado da imagem de S. Francisco Xavier e ao som das violadas de um dos antigos liceístas do Afonso de Albuquerque no topo do Altinho.

Musicalmente pouco educado, salvo umas sete aulas de Blockflöte que a minha mãe me impôs, bem como umas tímidas actuações no Côro do Colégio Alemão, na penúltima fila do lado esquerdo, perto da cortina, esses fins de tarde veranescos incutiam em mim um sentimento de impotência e pânico. O mesmo passava-se, em medida muito mais exagerada, nas minhas idas infantis a Goa. Rodeado de um mundo supostamente familiar mas afinal tão desconhecido, envolto de um clima tropical e coberto de terríveis borbulhas que só dez anos depois compreendi serem devidas ao produto com que a nossa empregada Inacinha lavava o chão da nossa casa, e mesmo na companhia dos meus irmãos que deviam passar pelo mesmo, gelava aterrorizado de cada vez que se abriam as clareiras na sala afastando a aristocrata mobília indo-portuguesa contra as paredes frescas caiadas de branco.

Felizmente, fui crescendo, ganhando força e liberdade, especialmente capacidade argumentativa para legitimar o meu “Não” quando alguém me tentava arrastar para o centro dançante. Nem sempre foi possível e as experiências traumatizantes foram-se sucedendo naturalmente, as risotas gerais à volta, e eu nas minhas jeans apertadas, camisa por dentro das calças e os sapatos de vela a guinchar no chão de pedra polida indiana.

Foi então com certa nostalgia que revivi esses momentos quando cheguei a Nova Deli e fui confrontado com festas dançantes ao fim da tarde na universidade. A quarenta graus ou a dez, não interessa, ao ar livre ou dentro de uma sala, qualquer oportunidade aqui serve para se arremessarem os braços para o ar, esticar os rins e bater os pés no chão ao som das batidas da música Bollywood. Sem uma gota de álcool, sem Red Bull, sem charros, sem música mesmo, quando falta a electricidade por alguns minutos.

Dança-se como se fosse a última noite de vida na terra. Encenam-se os movimentos que se viram na tela e na televisão, roçam-se os corpos, trocam-se olhares e parceiros, alguns rapazes de tronco nu, professores a olhar, de vez em quando um até dança, tudo numa fluidez e com uma naturalidade que são totalmente estranhos ao que se observa na Europa em que a prática da dança é comercializada, intoxicada, esvaziada de qualquer essência e carregada de todos demais significados e leituras, tão pornográficas, tão frias. Tão bem descrito no ensaio “La Fête” no livro “Rester Vivant” do Michel Houellebecq.

Não se limita esta minha observação a uma suposta universidade mais liberal. Por todo o país, em todos os extractos sociais e regiões por onde passei observei esta prática. É com tremenda dificuldade que os estrangeiros encaram esta disposição natural festiva e dançante indiana. Até os mais relativistas e alternativos e wannabe estudantes de intercâmbio franceses que por cá andam baqueiam impotentes perante o fenómeno, sorriem inseguros por detrás dos troncos das árvores e rapidamente desaparecem por detrás dos arbustos para fumar charas.

Há algo de essencialmente errado na avaliação europeia generalista que se faz de uma Índia supostamente tradicional, sub-desenvolvida e conservadora e por isso mais alegre, e de uma Europa e de um Ocidente supostamente moderno ou pós-moderno, liberal e progressivo, racional e por isso menos alegre. Não deixa de ser errada, confusa, frustrada e vingativa. Para quem viesse de Marte e observasse uma festa em Nova Deli e depois outra em Lisboa, sinceramente, diria que os Europeus devem estar loucos, ou, simplesmente, muito tristes.