Entro no restaurante já passa da meia-noite. À volta das longas filas de mesa com cobertura de papel branco manchado pela manteiga, pela sangria e pelo arroz doce estão dezenas de adolescentes. Alguns loiros com roupas caras. Outros com casacos escuros de cabedal e ténis rotos. Nas mesas, por entre pratos com generosos restos, muitos telemóveis.
Começo pela primeira fila. O jovem homem de óculos de massa não me olha. Com um gesto de desprezo, a mão manda-me calar antes mesmo de poder falar. Estão duas jovens sentadas à mesma mesa. Uma levanta o olhar e sorri para mim. A amiga exclama: "Já andas a flirtar com monhés? Tás mesmo necessitada pá".
Continuo. A fila seguinte reúne um vasto grupo de jovens. O primeiro adolescente, de camisa branca aos quadradinhos acena-me simpaticamente: "Anda cá. Anda cá!". Repete o imperativo. Aproximo-me. Há alguns casais entre o grupo. Vestem boas roupas. Espero fazer algum dinheiro.
"Então não tiveste ali em Alfama no outro dia?" exclama o adolescente, piscando o olho à loira sentada à frente. "Não me percebes ou não queres perceber? Ou era teu irmão ou o teu primo? Vocês também são mais que as mães, fodas." É tudo muito rápido, não compreendo. Estendo-lhes as flores, não custa nada tentar. "Quer flor?" Riem-se muito. O rapaz de camisa aos quadradinhos insiste. "O que é essa merda que tens aí? Quanto queres por uma?" Respondo. Mas agora são já três miúdos a segurarem e a mexerem nas flores. "Esta cheira mal pá". "Pois, cheira como lá na terra dele". "Dou-te cinquenta cêntimos por uma". Gargalhadas. Acedo. Afinal compro uma por trinta lá em baixo em Alcântara. Mas devolve-me a flor. "Era o que querias. Toma lá esta merda e espeta onde quiseres".
Um rapaz aproxima-se mais seriamente. A namorada à qual estava abraçado quando entrei olha lá do fundo. "Dá lá uma", diz, pega numa flor e com a outra mão estende-me uma moeda de cinquenta cêntimos. Aproximo a minha mão, mas a moeda cai ao chão. Baixo-me para a apanhar. Mas de repente o rapaz dá-me uma pancada leve na cabeça, o meu chapéu cai ao chão, e grita para o restaurante inteiro ouvir: "Ó merda de panasca. Não queres é chupar só dinheiro".
Aos berros masculinos que explodem em coro juntam-se as gargalhadas dos empregados e de mais alguns clientes. Alguns limitam-se a sorrir. A loira engasga-se de tanto rir. As amigas acodem-na. Aparece o empregado e empurra-me. "Vai, sai mas é daqui."
Está muito frio. Depois da ronda pelas discotecas, apanho o metro e o primeiro autocarro. A tempo de o ver acordar. Ao abrir os olhos castanhos, envolto de mantas e ensonado ainda, pergunta: "Papá, o meu chapéu deu-te sorte hoje?".
sexta-feira, 27 de maio de 2005
quarta-feira, 25 de maio de 2005
Decadência do Mundo Ocidental – Sistema político (1)
Não sou suficientemente utópico para acreditar numa assembleia em que os eleitos representam harmoniosamente os vários interesses, sectores, classes e ideologias da sociedade. Em que se debate construtivamente e francamente o que está mal no país, o que deve mudar e para onde se deve orientar a economia, a educação ou a saúde.
Não sou suficientemente eurocêntrico para acreditar que este sistema de democracia liberal representativa assente nos pilares do capital e da economia do mercado seja o único, o terminal e o melhor. Que este seja o sistema que temos que trabalhar continuamente porque mais do que um sistema é um processo.
Não sou suficientemente revolucionário para apelidar os 300 e tal deputados à Assembleia da República Portuguesa de corruptos, acomodados e gatunos. Para defender que afinal está tudo mal, que é preciso cortar o mal pela raiz e olhar para formas alternativas de organização política entre as tribos Guayaki do Paraguay ou entre os guerrilheiros maoístas no Nepal.
Mas acho-me suficientemente bem posicionado para observar uma decadência do sistema político português e ocidental. Observações confirmadas hoje com a presença mensal do primeiro-ministro em S. Bento para o debate mensal com os parlamentares. É perigoso entrar em generalizações. Mas, num pantanoso enredo de nuances em que um parece melhor que o outro, este mais ou menos sério que aquele, e aquela mais sincera que este, não há saída a não ser caracterizar todos de profundamente medíocres.
O debate é vazio. Um diz, o outro percebe e desdiz ou finge não perceber e diz outra coisa. Um debate de surdos-mudos. Em que na fila por detrás dos oradores há sempre um a bocejar, um a telefonar, um a ler ou um a pedir mais um cópo de água daquelas funcionárias gordinhas chamadas Maria ou Gracinda vestindo fatos dos anos oitenta. Em que, mais à direita do que à esquerda, se interrompe o orador a cada quarto de minuto com sonoros e inócuos "muito bem, muito bem". Em que se pretende ferir o adversário como numa batalha medieval, não servindo o capacete inimigo como troféu, mas sim os flashes dos fotógrafos, as citações no jornal do dia seguinte e o ranking das setas "sobe e desce" ao fim da semana.
Em que tudo é um malabarismo de verborreias direccionadas a ganhar prestígio somente naquele minúsculo universo de um hemiciclo que mais e mais se assemelha aos conselhos aristocráticos ou liberais novecentistas, em que uns poucos esclarecidos debatiam o futuro dos que se mantinham na escuridão das letras e dos saberes.
É a degeneração. É a decadência. Porque houve melhor, noutros contextos que não permitiam o alargamento do fosso entre o real e o suposto. É tudo um teatro político. Sempre foi. Mas houve tempos em que os personagens se representavam a si mesmo. Acreditavam em si. Hoje os personagens já nem se conhecem a si mesmo. A máscara ganhou raízes na pele branca. E a plateia vazia.
Não sou suficientemente eurocêntrico para acreditar que este sistema de democracia liberal representativa assente nos pilares do capital e da economia do mercado seja o único, o terminal e o melhor. Que este seja o sistema que temos que trabalhar continuamente porque mais do que um sistema é um processo.
Não sou suficientemente revolucionário para apelidar os 300 e tal deputados à Assembleia da República Portuguesa de corruptos, acomodados e gatunos. Para defender que afinal está tudo mal, que é preciso cortar o mal pela raiz e olhar para formas alternativas de organização política entre as tribos Guayaki do Paraguay ou entre os guerrilheiros maoístas no Nepal.
Mas acho-me suficientemente bem posicionado para observar uma decadência do sistema político português e ocidental. Observações confirmadas hoje com a presença mensal do primeiro-ministro em S. Bento para o debate mensal com os parlamentares. É perigoso entrar em generalizações. Mas, num pantanoso enredo de nuances em que um parece melhor que o outro, este mais ou menos sério que aquele, e aquela mais sincera que este, não há saída a não ser caracterizar todos de profundamente medíocres.
O debate é vazio. Um diz, o outro percebe e desdiz ou finge não perceber e diz outra coisa. Um debate de surdos-mudos. Em que na fila por detrás dos oradores há sempre um a bocejar, um a telefonar, um a ler ou um a pedir mais um cópo de água daquelas funcionárias gordinhas chamadas Maria ou Gracinda vestindo fatos dos anos oitenta. Em que, mais à direita do que à esquerda, se interrompe o orador a cada quarto de minuto com sonoros e inócuos "muito bem, muito bem". Em que se pretende ferir o adversário como numa batalha medieval, não servindo o capacete inimigo como troféu, mas sim os flashes dos fotógrafos, as citações no jornal do dia seguinte e o ranking das setas "sobe e desce" ao fim da semana.
Em que tudo é um malabarismo de verborreias direccionadas a ganhar prestígio somente naquele minúsculo universo de um hemiciclo que mais e mais se assemelha aos conselhos aristocráticos ou liberais novecentistas, em que uns poucos esclarecidos debatiam o futuro dos que se mantinham na escuridão das letras e dos saberes.
É a degeneração. É a decadência. Porque houve melhor, noutros contextos que não permitiam o alargamento do fosso entre o real e o suposto. É tudo um teatro político. Sempre foi. Mas houve tempos em que os personagens se representavam a si mesmo. Acreditavam em si. Hoje os personagens já nem se conhecem a si mesmo. A máscara ganhou raízes na pele branca. E a plateia vazia.
terça-feira, 24 de maio de 2005
Voltar a Lisboa
Dez meses em Nova Deli. Tanto e tão pouco. Aventura e nada de mais. Casa e estrangeiro. Aqui e ali. Índia e mundo.
Puxar a mala de debaixo da cama. Poeira. Quarenta e quatro graus. Viajar ou voltar? Calor ou frio, ali ou aqui? Pobreza, de carteira ou de espírito?
O táxi não pode parar. Os acompanhantes não podem entrar. O terrorismo tem que ficar à porta. Eu entro. Adeus. Já volto. Mas não é bem assim.
A Índia híbrida aeroportuária. Os funcionários indianos da KLM, da Lufthansa, da Air France, da Northwest Airlines. Bebem decadência, a toda a hora.
A longa espera para o embarque de madrugada. A Sprite custa cinco vezes mais. O adeus sufocado ao telefone. Percebo. Talvez? Espero que sim.
747. A dormida, a comida, a chegada. Amesterdão.
05:45. Abrem-se as lojas. As linhas rectas, os Euros (muitos), o frio e a limpeza. Europa.
A espera, mais uma vez, sozinho, num longo corredor. Acordo: portugueses chegam. Ela censura-o por bater com as mãos ruidosamente na mesa, avisando que o polícia ainda vem ter com eles. Ele responde que se ele vier lhe pega na espingarda e lhe enfia um tiro pelo buraco acima. Não queria, mas sorrio feliz.
Lisboa. Sorrio. Feliz. E eu não queria. Não queria mesmo.
Puxar a mala de debaixo da cama. Poeira. Quarenta e quatro graus. Viajar ou voltar? Calor ou frio, ali ou aqui? Pobreza, de carteira ou de espírito?
O táxi não pode parar. Os acompanhantes não podem entrar. O terrorismo tem que ficar à porta. Eu entro. Adeus. Já volto. Mas não é bem assim.
A Índia híbrida aeroportuária. Os funcionários indianos da KLM, da Lufthansa, da Air France, da Northwest Airlines. Bebem decadência, a toda a hora.
A longa espera para o embarque de madrugada. A Sprite custa cinco vezes mais. O adeus sufocado ao telefone. Percebo. Talvez? Espero que sim.
747. A dormida, a comida, a chegada. Amesterdão.
05:45. Abrem-se as lojas. As linhas rectas, os Euros (muitos), o frio e a limpeza. Europa.
A espera, mais uma vez, sozinho, num longo corredor. Acordo: portugueses chegam. Ela censura-o por bater com as mãos ruidosamente na mesa, avisando que o polícia ainda vem ter com eles. Ele responde que se ele vier lhe pega na espingarda e lhe enfia um tiro pelo buraco acima. Não queria, mas sorrio feliz.
Lisboa. Sorrio. Feliz. E eu não queria. Não queria mesmo.
segunda-feira, 9 de maio de 2005
Calor terminal
Aproxima-se o fim do meu primeiro ano em Nova Deli. Hoje à noite há uma festa cá em casa, porque é o último dia em que o JB (o francês Jean-Baptiste) se encontra no lar, antes de partir amanhã de manhã em viagem pela Índia e daqui a um mês de volta para França. Vai haver uma trintena de convidados, um barbecue de bifes de vaca sagrados (para nós), música da viola de um ou outro e conversa. Os exames acabam oficialmente hoje. Eu acabei os meus na semana passada. Termina assim um ciclo, porque há muitos estrangeiros que só ficam cá um ano. O meu amigo Chacate e eu perdemos assim também um flatmate e a sua namorada (presença regular). A família que se fazia, desfaz-se. Far-se-á outra, provavelmente.
O verão deliense está a ser complacente. Qualquer europeu que agora cá chegue quase que morre no primeiro dia, mas para nós já é habitual. Embora estejamos no apartamento no topo do prédio em que o sol bate todo o dia. Mas também houve chuva refrescante de vez em quando e só às vezes, e a partir de agora durante um mês, a temperatura passa dos 40 graus.
Quarta-feira escapo-me para Dharamsala, a capital do governo tibetano (ou o que resta dele) no exílio, sede oficial do (querido) Dalai Lama. Aquilo fica a umas centenas de quilómetros a norte de Deli, na altitude refrescante dos Himalaias. Depois volto a Deli e dia 19 estarei pelo meio-dia no aeroporto da Portela de Sacavém. Um mês em Portugal.
E fica a nota de uma reportagem minha de cinco páginas publicada na revista Única do Expresso, este Sábado. É sobre a cidade de Bhopal, onde há cerca de 20 anos de deu um dos maiores desastres industriais de sempre. Chama-se "Vítimas desamparadas" e espero que gostem da minha estreia no mundo das reportagens.
O verão deliense está a ser complacente. Qualquer europeu que agora cá chegue quase que morre no primeiro dia, mas para nós já é habitual. Embora estejamos no apartamento no topo do prédio em que o sol bate todo o dia. Mas também houve chuva refrescante de vez em quando e só às vezes, e a partir de agora durante um mês, a temperatura passa dos 40 graus.
Quarta-feira escapo-me para Dharamsala, a capital do governo tibetano (ou o que resta dele) no exílio, sede oficial do (querido) Dalai Lama. Aquilo fica a umas centenas de quilómetros a norte de Deli, na altitude refrescante dos Himalaias. Depois volto a Deli e dia 19 estarei pelo meio-dia no aeroporto da Portela de Sacavém. Um mês em Portugal.
E fica a nota de uma reportagem minha de cinco páginas publicada na revista Única do Expresso, este Sábado. É sobre a cidade de Bhopal, onde há cerca de 20 anos de deu um dos maiores desastres industriais de sempre. Chama-se "Vítimas desamparadas" e espero que gostem da minha estreia no mundo das reportagens.
Decadência do Mundo Ocidental (intro)
Engana-se o que acha que distingo e escolho entre preto e branco. E engana-se quem ache que há cinzento intermédio possível. Há decadência no Ocidente. Resta saber se é uma decadência que é-lhe intrinsecamente natural ou se é uma decadência recente e em aceleração. É uma decadência especialmente no plano social e moral. Baseada fundamentalmente naquilo que paradoxalmente fez também emergir e brilhar o Ocidente, nomeadamente a superioridade material e científica.
Só por eu denunciar o que se passa a Ocidente, isso não catapulta o Oriente para a) a posição de um novo Ocidente, agora mais a Oriente, b) a posição de civilização divinal e perfeita; nem catapulta o Oriente para c) a posição de histórico oprimido que passa a ser a chave para a redenção dos oprimidos.
Sirvo-me do Oriente (a Índia em específico) para denunciar o Ocidente, simplesmente. Aliás, só utilizo o conceito Oriente por motivo de força maior, para classificar o que não é o Ocidente. O Ocidente, sim, esse distingo-o claramente. É a Europa desenvolvida ou em desenvolvimento (escolham o que preferem), a América do Norte, e as ilhotas brancas nova-zelandesas ou australianas, etc., o eixo da superioridade científico-tencológica, a suposta racionalidade e objectividade que depois se refugia na mediocridade da acomodação, da subjectividade, do relativismo radical, basicamente no medo.
A escolha ou distinção entre o preto e o branco, entre o Ocidente e outra coisa qualquer, aliás não faz sentido nem é possível porque um suposto Oriente já é parcialmente Ocidente. O Ocidente exportou-se para bem e para mal. Presentemente mais para mal, acho. Por isso também me debruço perante a decadência do não-Ocidente porque quer ser Ocidente e importa o errado.
Portanto, para além do Mundo Ocidental, duvido que haja outros mundos, de momento. Portanto, estando no que hipoteticamente é visto por alguns como Oriente, tenho a vida facilitada para denunciar a decadência do Ocidente, no Ocidente e fora dele. Portanto, o Ocidente é-me afinal querido, porque denuncio a sua decadência.
Só por eu denunciar o que se passa a Ocidente, isso não catapulta o Oriente para a) a posição de um novo Ocidente, agora mais a Oriente, b) a posição de civilização divinal e perfeita; nem catapulta o Oriente para c) a posição de histórico oprimido que passa a ser a chave para a redenção dos oprimidos.
Sirvo-me do Oriente (a Índia em específico) para denunciar o Ocidente, simplesmente. Aliás, só utilizo o conceito Oriente por motivo de força maior, para classificar o que não é o Ocidente. O Ocidente, sim, esse distingo-o claramente. É a Europa desenvolvida ou em desenvolvimento (escolham o que preferem), a América do Norte, e as ilhotas brancas nova-zelandesas ou australianas, etc., o eixo da superioridade científico-tencológica, a suposta racionalidade e objectividade que depois se refugia na mediocridade da acomodação, da subjectividade, do relativismo radical, basicamente no medo.
A escolha ou distinção entre o preto e o branco, entre o Ocidente e outra coisa qualquer, aliás não faz sentido nem é possível porque um suposto Oriente já é parcialmente Ocidente. O Ocidente exportou-se para bem e para mal. Presentemente mais para mal, acho. Por isso também me debruço perante a decadência do não-Ocidente porque quer ser Ocidente e importa o errado.
Portanto, para além do Mundo Ocidental, duvido que haja outros mundos, de momento. Portanto, estando no que hipoteticamente é visto por alguns como Oriente, tenho a vida facilitada para denunciar a decadência do Ocidente, no Ocidente e fora dele. Portanto, o Ocidente é-me afinal querido, porque denuncio a sua decadência.
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