sábado, 30 de outubro de 2004

Thursday Forum

Encontramo-nos numa pequena fria sala em que chega a chover, porque o telhado está quase a cair aos bocados. É assim pelas nove da noite, às vezes dez, depende de quem vem, com que vem, depende. Alguns trazem a comida da cantina que fica por baixo e jantam. Encomendam-se dezenas de chávenas de chá e café cujo líquido ardente transborda fumegante para a bandeja em alumínio que as mãos escuras e sujas do rapaz empregado da cantina seguram.

Começamos com o Thought of the Week, em que todos partilham um pensamento com o resto do círculo de jovens sentados, agachados, instalados em poltronas poeirentas. O thought é suposto ser pessoal e ligeiro. Às vezes sucedem-se episódios burlescos e diários, curiosos e enriquecedores, no entanto. Outras vezes alguém incendeia a sala com um pensamento político, provocador, pedante. Já houve semanas em que alguém se lembrou de comentar o sistema de castas na Índia. A discussão prolongou-se até ao raiar da manhã.

Depois segue-se a apresentação de um tema, variando o orador e a temática a cada semana. Ouve-se atentamente. Mas, ao mesmo tempo, entram e saem alguns. A porta abre-se. Fecha-se. Vem mais chá. Ou café. Ouve-se. Alguns, raramente, interrompem para esclarecer um ou outro assunto.

Finalmente, abre-se a arena. Anarquicamente, mas respeitosamente, sucedem-se as intervenções. O debate pode ser quente e barulhento. Ou letárgico, monótono, arrastando-se pelo painel do relógio em que os ponteiros atrasados parecem desacelerar a cada intervenção. Nesses dias estamos em casa pela meia-noite.

Algumas vezes alguns adormecem. Outros mantêm um silêncio prolongado de várias horas para depois irromperem pela sala com uma intervenção que arranca ovação. Há aqueles que tendem a monopolizar a conversa. Há os terroristas retóricos, espalhando veneno e deitando combustível sobre a ardente arena verbal. Há os terroristas institucionais que tentam sempre dar organização e disciplina ao debate, impondo regras, constituições, apontamentos, tudo o que no fim não é nada seguido. Outros saem sempre mais cedo com uma desculpa esfarrapada, que não é necessário porque não há culpa nenhuma em sair. Alguns fumam. Há um uzbeque que vem sempre de fato e gravata. O francês não larga o capacete da mota que acabou de comprar.

Variamos nas temáticas. Houve uma Quinta-feira em que discutimos a relação entre o clima e o desenvolvimento. Outra em que se falou de Caxemira. Noutra semana falou-se do fim da História. Ontem foi noite de poesia. Geralmente, tendo em conta o facto de que participam principalmente estudantes do sexo masculino, a conversa descamba no fértil terreno da sexualidade e do trivial, como hábitos sociais, vestuário, gastronomia.

Ontem, por exemplo, participaram, um norte-americano, um uzbeque, uma bangladeshi, um moçambicano, um auto-proclamado caxemire, dois franceses, um nepalês, eu, um vietnamês, um indiano, e mais alguns de que não me lembro. Quando olhei para o relógio passava da uma. É o Thursday Forum, a tertúlia que iniciei e que vejo com os bons olhos com os que um pai supostamente vê um filho seu. Todas as Quintas-feiras a minha vida em Deli realiza-se um pouco mais, em Nova Deli.

quinta-feira, 28 de outubro de 2004

Cruzamento alegre

Fui jogar futebol, hoje como tantas outras vezes. Vou com o Chacate e jogamos com os indianos. Ele vai um pouco mais cedo, porque não tem bicicleta. Às vezes ultrapasso-o a caminho do estádio. Acho que dois europeus não se olhariam. O da bicicleta fingira que não tinha visto o outro a pé. Ou ao contrário. Ou simplesmente, a bicicleta passaria em silêncio, do outro lado da rua, porque não faria sentido um aceno, uma palavra ou um sorriso. Porque há poucos minutos ainda estavam em casa e porque daqui a poucos minutos vão estar juntos outra vez, no estádio. Simplesmente, não faria sentido. Não haveria razão para um contacto, porque é suposto haver uma, sempre, supostamente.

Mas eu, ao passar, não resisto. Já tive muitas desilusões, mas vale sempre a pena tentar mais uma vez. Porque havia de negar um impulso meu natural? Porque não contactar e comunicar, por respeito e afecto para com alguém amigo, conhecido? Cuidadosamente, ao passar pedalando, olho para o outro lado da estrada. Ele segue na mesma direcção, pisando o pó e o lixo, serpentando silenciosamente por entre as carroças, os triciclos, as vacas e as pessoas, muitas. Envergonhadamente e desiludido preparo-me já para voltar a olhar em frente e seguir o meu caminho sozinho.

No preciso momento em que passo por ele, já a minha face se está a redireccionar para o caótico tráfego à minha frente, ecoa por entre o barulho indiano uma voz alegre, africana, sorridente. "Olhó Eusébio goês!".

segunda-feira, 18 de outubro de 2004

O macaco (I)

Talvez, para quem à distância de uma Lisboa protegida pela Europa e pelo desenvolvimento ache que a Índia é mesmo uma terra de bananas, macacos e alguns indianos semi-desnudados a correr pela mata a história possa parecer normal.

Facto é, que eu vivo há três meses nesta cidade e que posso categoricamente afirmar que Nova Deli é mais centro de decisão – político, cultural e económico – que dez a quinze Lisboas juntas. Pode ter o seu anel de pobreza e miséria, poder ser porca e ter um clima desagradável, tudo bem, mas é uma cidade que claramente já se enquadrou no eixo daquilo que o meu professor em França chamava de archipels métropolitains mondiaux.

Há três meses que passeio por Nova Deli e nunca vi um macaco, a não ser uns presos a correntes a fazer malabarismos para turista ver. Hoje, no entanto, vi um macaco quando acordei. Hoje, no entanto, lutei contra um macaco que poderia ser a encarnação do pior demónio à face da terra. Hoje dormirei com a minha porta fechada, pela primeira vez.

Há uns dias o meu companheiro de apartamento, o Chacate de que já vos falei, contou-me, com uma naturalidade que me inquietou, que tinha chegado a casa e visto um macaco sentado em cima do nosso frigorífico. Primeiro não acreditei. Depois também não acreditei. Finalmente acreditei. Como as relações com os vizinhos não são as melhores pensei que fosse mais uma manobra para nos assustar.

Hoje de manhã, um belo Sábado, estou a dormir pacatamente na minha confortável cama. Deixo a porta aberta, para entrar ar fresco. Não há perigo porque a porta principal está sempre fechada de noite e impede a entrada de qualquer estranho. Qualquer estranho? Durmo.

Deixo de agarrar o meu sonho e subo à superfície das coisas terrestres quando algo me toca ao de leve na cabeça. É mais do que um roçar mas menos que uma pancada leve. Talvez uma festa? Abro os olhos. Estou deitado de costas, olho para cima. Nesse primeiro segundo noto somente que um vulto se encontra por detrás, levemente por cima, da minha cabeça, talvez a dez centímetros. Acho que me apercebo que se trata de um animal. Mal tenho tempo para adivinhar.

Levanto-me instantaneamente, e vejo que do topo da cama em madeira salta um macaco, de pêlo castanho, com pequeninas orelhas arrebitadas encaixando uma face nua e cor de rosa, e, no meio desta, dois penetrantes olhos de pupilas castanhas avermelhadas. Tem cerca de meio metro de altura, talvez o tamanho de uma criança de quase três anos.

Olho para o macaco que olha para mim enquanto se movimenta lentamente em direcção à porta. Instintivamente tento afugentá-lo com um sht. Mas o sht que resultou com o cão indiano em Goa (vide Fragementos) não resulta aqui. O macaco para a sua marcha, fixa o olhar em mim e parece iniciar a qualquer momento o salto mortífero em direcção à minha cabeça. Esse segundo – como nos filmes – parece durar vários segundos, mas, finalmente, o macaco prossegue a caminhada. Sentado na cama, não acredito no que acabo de presenciar.

Levanto-me e saio pela porta para perseguir o animal, e ver se de facto vai para a casa dos vizinhos e faz parte de um maquiavélico plano para afugentas três estudantes estrangeiros noisy and weird. Saio pela porta, olho em redor, nada. Parece que foi um sonho. Mas subestimo a impressionante rapidez e agilidade do macaco. Está no telhado dos vizinhos. Desaparece.

O macaco (II)

Conto a história com certo orgulho a amigos e conhecidos com que me encontro durante o dia. Quem diria, um macaco em Deli, e ainda por cima na minha cama às sete da manhã? São várias as reacções, desde uma negação absoluta que me faz duvidar da minha demência (there are no such things as monkeys in Delhi) até ao riso generalizado e troça.

Mas o macaco estaria de volta, mais cedo do que pensava. De tarde estou sozinho em casa, com uma amiga (mais detalhes sobre isto mais tarde). Eu estou sentado ao computador, ela sentada a ler na cama. A porta está entreaberta. Sim, ele entra pacamente pela porta, olha-nos, está a uns dois metros, vira-se, e tão rapidamente como aparece, desaparece. O macaco.

Olho para ela e chega para saber que ainda estou são mentalmente. Saio que nem uma flecha e - agora já conheço o know-how deste criminoso - olho para o telhado dos vizinhos onde ele se encontra já plantado, olhando-me. Não o vou deixar escapar. A minha ingenuidade ocidental vem ao de cima e subo para o nosso telhado. Vou afugentá-lo para ele não voltar mais. Pego em duas pedras e atiro.

Vira-se. Olha-me com toda a ferocidade e ódio em conjunto que jamais testemunhei na minha vida. Movimenta-se lentamente em minha direcção, olha-me nos olhos, as orelhitas está arrebitadas satanicamente. Mostro medo, viro-me eu em direcção à escada. Vejo que a minha amiga – curiosa – vem a subir. O macaco aproxima-se, ganha velocidade, com as duas mãos apoiadas no chão e o impulso das musculadas pernas castanhas. Está a quatro metros. Grito para ela descer. Claro que não compreende, não sei porquê mas certas mulheres têm dificuldade de coordenação motora em momentos de emergência em que urge decidir e agir rapidamente e decididamente. Li um artigo sobre isso na Science. A tese final, no normativo contexto sexista prevalecente, até é mais favorável às mulheres.

Ela não desce, depois desce lentamente porque a empurro. Ele aproxima-se. Está a um metro e meio quando eu decido saltar, porque não posso descer pela escada. Salto e bato com o joelho no chão – dor. O macaco fica no telhado, na margem, a boquinha abre-se perigosamente mostrando os dentes afiadinhos. A minha amiga refugia-se no quarto e fecha a porta – eu pego numa vassoura. Com o cabo dela inicio o combate mais feroz que alguma vez tive. O macaco rodeia o terraço, ameaça saltar para cima de mim (tem a vantagem de estar no telhado e eu encurralado num vale). Salta para cima dos tanques de água.

Eu ataco com o pau, dou-lhe umas pancadas – talvez pouco violentas porque estava intimidado. A cada batida ele responde com mais agressividade ainda. Contra-ataca, em vez de se defender. Afinal, é um animal. Por detrás, os berros e gritos da minha amiga. São longos segundos em que o meu medo atrai o macaco.

Toca a campainha. Por momentos penso em reforços e assusto-me. Mas oiço a voz do Chacate. Reforços humanos, portanto. Cuidadosamente, com o cabo da vassoura em riste, desloco-me para a porta e abro-a. Ele entra e, ingenuamente, com uma enorme calma, atravessa o terraço. Refugio-me por detrás dele e vamos para a cozinha onde lhe explico o que se passa. Do topo da porta, continuam as investidas.

O Chacate – afinal vem de Moçambique – compreende logo que isto se trata de uma clássica luta entre humano e animal e com uma calma surpreendente diz O gajo tá mas é à minha procura e manda uma grande gargalhada tão descontextualizada mas tão reconfortante. Vou mas é buscar água a ver se ele foge. Enquanto o macacaco continua a ameaçar saltar para cima de mim e arrancar-me os olhos e infectar-me com ébola e eu o castigo com excitadoras bastonadas, oiço água a correr na casa-de-banho. Chacate volta e vejo-o segurando um pequenino baldinho – do tamanho de uma grande lata de cerveja. Não faz ideia que o demónio não se afugenta com uns pingos de água.

As investidas começam a rarear. O macaco desaparece. Mas não nos aventuramos a sair, ele pode estar à espera de saltar. Vamos ver televisão.

O macaco (III)

Enquanto – ainda traumatizados e mudos – olhamos para a caixa global, algo se altera no parque infantil que é contíguo ao nosso prédio. Os alegres e animado berros das crianças transformam-se em gritos de pânico e desespero. Aproximo-me rapidamente da janela. As crianças correm, a chorar e a gritar, confusamente pelo parque. Pelo meio vejo um vulto ágil e acastanhado – talvez uma criança também em busca de um pouco de afecto e brincadeira.

Poucos segundos depois, o parque está transformado num deserto, do movimento só resta um baloiço que ainda se mexe, em memória de uma criança.

Volto a sentar-me. Acordei com esse macaco a acordar-me, digo ao Chacate. Ele responde: "eh pa o gajo vai voltar amanhã com mais dez, e vai olhar para nós os dois, vai apontar para mim e dizer este não e depois vai apontar para ti e dizer sim, esse tuga é que o vamos comer". Rimo-nos.

O macaco (IV, post-scriptum)

Fomos hoje convidados para jantar na casa da nossa proprietária de apartamento, Madam Rita. Quando lhe conto superficialmente da história do macaco, diz de soslaio que I had a monkey living there for many years, he would come to sleep there with me and eat with us, very gentle animal but one day he disappeared and he was said to be run over by a bus and died.

Sinto-me zonzo, a minha visão fica nebulosa. O macaco dela voltou, acariciando-me a cabeça, e resgatando-me do mundo dos sonhos, não para a superfície das coisas terrestres mas para o mundo dos mortos.

quinta-feira, 14 de outubro de 2004

Coelhos

Hoje acordei às 08:45 com o filho da nossa empregada da limpeza. Chama-se Mohammed Kash e tem 13 anos. Tocou a campainha e fez-me afastar o leve cobertor (já começa a fazer frio em Deli) e levantar da cama, atravessar o terraço e abrir a porta de madeira em tom creme. Com um grande sorriso diz-me Good morning Sir.

Não fala inglês, ou fala muito pouco. Comunicamos com gestos, palavras soltas. Cada frase demora alguns minutos a ser transmitida ao outro. Imaginem a complicação quando na semana passada me tentou explicar algo com ruídos, rastejando no chão. Percebi que se tratava de um animal. Mas pensei que me estava a oferecer carne para comer, porque afinal somos carnívoros europeus. Recusei educadamente.

No Domingo a seguir estava em nossa casa, com uma gaiola cheia de coelhitos branquitos e queridos, não para comer, mas para brincar. Libertou-os no nosso terraço e puseram-se a pular pela casa toda. Divertimo-nos muito, o Jean-Baptiste insistindo em puxá-los pelas orelhas (c'est comme ça qu'on fait dans la campagne en France perante o olhar aterrorizado do rapaz) e a sua namorada Nivi encostando o pêlo claro dos animais à sua escura pele.

Voltando a esta manhã, deixei-o entrar e lá começou a fazer as limpezas, é normal ele às vezes chegar mais cedo que a mãe e começar já com algum trabalho. De facto, poucos minutos depois – ando eu ainda um pouco zonzo de boxers pela casa – chega a mãe, Sayida, uma senhora sorridente que terá os seus quarenta anos mas que também poderia ter 18. Enquanto lavam a nossa roupa, acorda o Chacate, cantarolando. Como acabo de receber a Voz do Oriente pelo correio, revista goesa de Portugal para a qual escrevo, começa uma discussão sobre colonialismo e relações rácicas etc. Discutimos Portugal, Moçambique, Goa, tudo numa vibrante hora que passa num abrir e fechar de olhos. Esquecemo-nos de tomar o pequeno-almoço e saímos de casa a correr para as aulas.

Segui de bicicleta – vermelha, com mudanças, 37 Euros – para a faculdade, são uns 10 minutos a pedalar pelo campus que acorda.

domingo, 10 de outubro de 2004

Bride and Prejudice

Fui ontem ver ao cinema mais uma tentativa de vender Bollywood ao Ocidente. "Bride and Prejudice" é um filme tristemente medíocre onde nem a linda ex-Miss Universe Aishwarya Rai se salva, arrastando-se pesadamente pela tela num tandem com o branco-perdido-entre-indianos Martin Henderson.

Pelo meio, muita cor, alguns elefantes, e toneladas de clichés. Se calhar sofri mais do que o normal, porque o filme de certa maneira diz-me respeito directamente (basicamente o confronto entre a Índia tradicional e alegre e o Ocidente moderno e arrogante, espelhado numa história de amor concreta). Tudo baseado na obra de Jane Austen, Pride and Prejudice.

O site oficial é engraçado. Não consegui descobrir se terá a honra de ser exibido por uns poucos dias num dos escuros cinemas intelectuais lisboetas, mas mantenham os olhos em aberto. Vale a pena, afinal vêem sempre um pouco da Índia em Lisboa.

Acordando

Acordo sempre, ou quase sempre, assim, de manhã: do meu lado direito, no quarto do Jean-Baptiste, o francês grande, musculado, branco e barbudo, silêncio ou barulho. No primeiro caso, dorme. No segundo caso, são audíveis alguns sons da sua namorada Nivi, uma bela e delgada e pequena rapariga, rica, de origem indiana, das Ilhas Maurícias.

Do meu lado esquerdo, no quarto do Chacate, negro moçambicano, pequeno mas musculado, imberbe ("só me barbeio de duas em duas semanas"), brilhantemente sorridente, sempre, canta, fala, monólogos. Versões adulteradas, africanizadas, chacatizadas, de músicas americanas (Aerosmith), portuguesas (Dulce Pontes), brasileiras (Gilberto Gil). Ou simplesmente imita vozes de crianças, muito alto: "Mamã, dá-mi u pão si faz favor". Ou vozes de mulheres: "Mininos, a comída istá na meza". Mas normalmente, do nada, entoa fragmentos de discursos académicos e políticos, em português ou inglês. "Mister President, thank you for joining us" ou "The dimension of change is not discussed ". Também cita de telenovelas brasileiras, ou comédias portuguesas: "Equivoquei-me a seu respeito, minha sénhora", ou "De repente é uma ou duas palavras? –Ó pá, nem é uma nem outra coisa" (Malucos do Riso com os alentejanos, presumo). Mistura todas estas temáticas, e, com a toalha colorida enrolada à volta da cintura escura ("eh pa, eu durmo nu, sabes?") desloca-se para a casa-de-banho, com a escova de dentes azul na mão direita.

A qualquer hora do dia, repentinamente, ecoam essas vozes, discursos, cânticos, os guinchos, os risos no quarto ao lado, no terraço, na casa de banho. Solitários. Quando ouvi no início, pensava ter ouvido mal. Depois, achei que poderia ser uma deficiência mental (dele, ou talvez minha). Simplesmente, agora, eu e o Jean-Baptiste, sentimo-nos reconfortados quando ouvimos esses sons confusos e estridentes, sérios e calmos, vozes múltiplas, identidades num quarto. Sabemos sempre que está alguém amigo, ali ao lado, aqui em Nova Deli.

sábado, 9 de outubro de 2004

Mastigar e Digerir a Índia, 2002 (Fragmentos V)

Converso numa pacata rua. De repente, roçando o meu joelho esquerdo, passa um cão, de pêlo claro. Tem a nuca e parte das costas desfeitas, em carne viva. Vejo a ponta de um osso. O golpe é alongado, percorrendo a base inferior da nuca até à região lombar. O cão pára uns segundos, desnorteado. Afugento-o com um mero “sht” e continuo a conversar sobre futebol.

sexta-feira, 8 de outubro de 2004

Serei eu até ser goês

Aqui, em Nova Deli, sinto-me mais católico, St. Dominic's Church, Vasant Vihar, Welcomes You, frequento as aulas de crisma na cave da igreja, rodeado de 200 crianças e adolescentes, what is faith? Father, can I have my confirmation in Goa?

Aqui, sinto-me mais europeu, dia 1 de Novembro José Manuel Barroso passa a ser a face do projecto político europeu e ele é bom e é português, the European Union Studies Programme JNU invites you to a seminar on EU-India relations, recebem milhões de Euros para indoctrinar os indianos com a mensagem de que a Europa é uma e una. So Portugal is in Europe?

Claro que também sou mais português, com firmes e superiores passos ultrapasso a fila de dezenas de indianos que esperam para entrar na Portuguese Embassy, New Delhi, aceno com o meu passaporte e o portão de ferro abre-se submisso. Entregam-me a lista de seis portugueses que vivem em Nova Deli. Jorge Sampaio is expected to come to New Delhi on an official visit in the first semester of 2005. Durante a inscrição na JNU dezenas de funcionários rodearam-me curiosamente ao ouvirem que eu era português, the first ever Portugal student we remember here, please be welcome, we like your country very much. Figo, adiciona timidamente uma funcionária mais nova, you know him? Um mais velho parece querer corrigi-la, Mário Soares, great man.

Com o meu flatmate Chacate sinto-me mais lusófono, orgulhosamente lusófono, vemos os resumos do Benfica às Quartas-feiras no canal Ten Sports, ouvimos Dulce Pontes e à noite, ao beber uma Kingfisher Strong lembramo-nos de episódios dos Malucos do Riso. Quando no outro dia depois de uma aula defendo perante o professor que o colonialismo português foi melhor que o colonialismo inglês na Índia, reparo que um vulto moçambicano está ao meu lado e intervém em minha defesa. O professor acaba por ser derrotado I didn't know about that e ouve com interesse dois colonizados a defenderem os colonizadores, um deles marxista, o outro não sei.

No fundo, claro que também sou um cidadão do mundo, humanista, um pouco mais socialista até do que em Portugal. Claro que ainda há muitas razões para me chamarem fascista, conservador, cristão-democrata, xenófobo. Não se assustem, vou continuar a desempenhar o papel que tanto vos agrada, serei a ovelha castanha em Lisboa. Mas agora podem também chamar-me de idealista, de humanista, utópico, socialista, um pouco marxista, fraco e oprimido e consequentemente defensor destes. Hoje ao voltar para casa vi uma criança defecar na berma da estrada enquanto olhava para a mãe que carregava tijolos com as mãos a sangrar. E ao sair de casa vi dois leprosos rastejando pela estrada, sem pernas.

Claro que também sou indiano, um pouco menos aqui na Índia, mas bastante na Europa. Afinal, chamavam-me monhé na escola. E quando explico my father comes from Goa, but we live in Portugal, sou dinamitado com - Oh so your father basically is Indian, so you are half Indian too, but now after JNU you will be full full Indian. (sorriso) E, no fundo, quando orgulhosamente tento explicar que sou de Goa, sei que todos retêm simplesmente que eu sou indiano, Indian, from somewhere in India, India. Yes, India.

Sim, e sou mais alemão, porque afinal toda a minha escolaridade é alemã, a metodologia, a classificação, a organização. E metade do meu património genético talvez come salsichas e bebe cerveja ao pequeno almoço. Ler Nietzsche, Goethe e Heidegger em alemão teve necessariamente o seu impacto. So where does your family live in Germany? So there are Indians and run a shop, no? What, so your mother has blond hair and your ancestors have fought for the Nazis? Amazing. In which language do you dream?

E continuo a ser goês. Melhor, goês condicionado, dependente da aprendizagem da língua Concani e de mais umas coisitas. Até lá sou eu. A partir de lá, serei goês. Avisarei quando o dia chegar.

terça-feira, 5 de outubro de 2004

Sou um cata-vento

Levei um puxão de orelhas de um familiar meu porque o tom de algumas das minhas últimas mensagens de Deli era num tom muito negativo da Índia. Ao reler algumas linhas dos últimos episódios de uma vida em Deli, percebo o motivo da chamada de atenção. Transparece um certo ressabiamento, uma frustração e uma perspectiva azeda do que observo na Índia.

Primeiro, não há motivos para preocupação. Estou a saborear ao máximo esta vida em Deli e não tenciono alterar o projecto, nem o alteraria se pudesse voltar atrás (porque há outras coisas que certamente alteraria, se pudesse). Estou felicíssimo. Podem estar contentes por mim, não me importo.

Depois, quando me entusiasmo na escrita, adopto um estilo livre cujo resultado só posso interpretar quando tiver acabado. Assim, basicamente sou tão leitor como vocês. Que o estilo tenha sido negativo (e admito que passe a ser sempre, por enquanto) é tão natural como eu abrir os olhos para ver. Ou como um cão babar saliva quando vê um naco de carne.

No entanto, admito que o estilo possa ter causas mais profundas na minha personalidade. Talvez um espírito crítico que intrinsecamente domina o meu carácter, fruto do esquizofrénico contexto multicultural em que cresci e em que insistentemente me movimento. Já me trouxe muitos dissabores porque transparece um eventual descontentamento meu com tudo o que me rodeia, uma crítica destrutiva constante, o que, no entanto, não corresponde à realidade, porque acho que sou uma pessoa tão feliz como todas as outras, talvez um pouco mais até.

Em Lisboa, era conhecido por criticar Portugal e os portugueses. Quando estou em Goa lanço os meus olhares críticos sobre Goa. Agora, em Deli, debruço-me sobre a Índia que me rodeia. É natural.

Não é por acaso que por muitos amigos meus era conhecido como "cata-vento", a beber um pouco de tudo, num relativismo às vezes cego mas tão enriquecedor. Prefiro ver-me como camaleão daltónico, que observa a realidade erradamente (diferentemente) e consequentemente não se adapta, como talvez gostaria, no fundo, mas se diferencia, às vezes excessivamente. Mas, em memória dessa alcunha, escrevi um poema, talvez o meu primeiro.

Cata-vento
Sou um cata-vento, sim,
com orgulho busco novos horizontes.
Pobre tu, ó triste seta rígida
apontada a um destino estático e imutável,
que não saboreias a beleza da brisa descobridora.

sexta-feira, 1 de outubro de 2004

Aprender hindi em devanagárico

Estou a aprender hindi desde o início do ano lectivo na School of Languages, JNU. Como sei que isto interesse à maioria das gentes portuguesas e ocidentais - o fascíneo pelo exótico e mitificado oriental - aqui segue uma imagem dos rabiscos que a vida em Deli me obriga a aprender.

Enquanto que de manhã estudo por vezes "programas de pesquisa científica" de Lakatos e Kuhn, à tarde volto ao distante passado e à clássica memorização e repetição até à exaustão como metódo de estudo. Mais sobre isto, em breve.

Ligar a bomba de madrugada

Foram uns dias de silêncio, causados pelo exame que escrevi hoje de manhã (Theory of International Relations) e o que está agendado para próxima Quarta-feira (Indian Political System). Mas, como todos os dias de uma vida em Deli, foram dias agitados, cheios de novas pessoas, novas vivências, novos cheiros e novos sabores.

Aqui, na Índia, acorda-se cedo. Como vivemos no topo do nosso prédio (top floor) e porque a água é um bem escasso no sub-continente indiano (polvilham os livros sobre "Water Wars"), temos que acordar cedo também, para ligar a bomba que suga a água das profundidades. Tem que ser entre as 5 e as 6 da manhã ou (às vezes e) entre as 6 e 7 da tarde.

O Chacate, o Jean-Baptiste e eu dividimos a tarefa em fatias de uma semana cada. Obviamente que custa acordar às cinco da manhã, subir ao telhado e ligar a bomba, mas é também uma forma ímpar de conhecer a Nova Deli madrugadora.

A JNU e a nossa área residencial ficam na rota de aproximação dos aviões que de todo o mundo chegam a Deli, ao Indira Gandhi International Airport. Às vezes em intervalos de um minuto cada, às vezes de meia em meia hora, passam a escassas dezenas de metros acima das nossas cabeças, especialmente nos locais mais altos da JNU (nas românticas Rocks, por exemplo, o que lhes dá um carácter muito mais romântico ainda quando se está abraçado a alguém).

Diz-se que depois de dois anos da JNU os estudantes sabem identificar todas as transportadoras aéreas que voam para a Índia (muitas, entre as quais Air Uzbek). Não deixa de ser curioso este sobrevoar constante de um dos templos do saber indiano por jactos comerciais que transportam a fauna global daqui para ali e dali para aqui. Especialmente para os estudantes estrangeiros o simbolismo chega a ser estrangulador, lembrando-os constantemente de que estão longe de casa, embora todos os dias, o pássaro ali vai, parece que basta agarrar e voar para casa.

No outro dia reparei numa estudante coreana e na brilhante lágrima que escorria do seu canto do olho direito, enquanto a cabeça inclinada perseguia o azul e o vermelho que cobriam aquele aparelho voador direccionado a Seul.

Portanto, enquanto espero que o tanque encha, o que demora os seus vinte a trinta minutos, nada melhor do que observar os aviões que vão aterrando. Embora a luz do sol ainda não ilumine as coisas terrestres nessa altura, já espalha o seu calor sobre a altitude metálica em que os aviões se encontram. O efeito é então uma superfície nas brumas, mas distinguindo-se já as figuras das casas, das pessoas e das coisas e um brilhante avião, com as dezenas de luzinhas das janelas, tudo sobre o pano de fundo que é o azul raiar da aurora.

Claro que há outras coisas a fazer, caso não adormeça no telhado. Do topo do nosso prédio podem-se observar as luzes e os interiores dos quartos que já vivem a esta hora da manhã. As crianças a prepararem-se para a escola, os mais idosos que partem para a indiana caminhada diária para manter a forma, os berros dos bébés que recusam crescer e ser apenas mais um num bilhão.

E, no meio de todo este movimento, todas as manhãs, há uma árvore meio morta, na escuridão raiante. Sobre os troncos secos estão agachadas dezenas de gralhas pretas, manchas escuras e imóveis que se fossem de outra cor poderiam ser saborosos frutos de uma árvore cheia de vida.