Encontramo-nos numa pequena fria sala em que chega a chover, porque o telhado está quase a cair aos bocados. É assim pelas nove da noite, às vezes dez, depende de quem vem, com que vem, depende. Alguns trazem a comida da cantina que fica por baixo e jantam. Encomendam-se dezenas de chávenas de chá e café cujo líquido ardente transborda fumegante para a bandeja em alumínio que as mãos escuras e sujas do rapaz empregado da cantina seguram.
Começamos com o Thought of the Week, em que todos partilham um pensamento com o resto do círculo de jovens sentados, agachados, instalados em poltronas poeirentas. O thought é suposto ser pessoal e ligeiro. Às vezes sucedem-se episódios burlescos e diários, curiosos e enriquecedores, no entanto. Outras vezes alguém incendeia a sala com um pensamento político, provocador, pedante. Já houve semanas em que alguém se lembrou de comentar o sistema de castas na Índia. A discussão prolongou-se até ao raiar da manhã.
Depois segue-se a apresentação de um tema, variando o orador e a temática a cada semana. Ouve-se atentamente. Mas, ao mesmo tempo, entram e saem alguns. A porta abre-se. Fecha-se. Vem mais chá. Ou café. Ouve-se. Alguns, raramente, interrompem para esclarecer um ou outro assunto.
Finalmente, abre-se a arena. Anarquicamente, mas respeitosamente, sucedem-se as intervenções. O debate pode ser quente e barulhento. Ou letárgico, monótono, arrastando-se pelo painel do relógio em que os ponteiros atrasados parecem desacelerar a cada intervenção. Nesses dias estamos em casa pela meia-noite.
Algumas vezes alguns adormecem. Outros mantêm um silêncio prolongado de várias horas para depois irromperem pela sala com uma intervenção que arranca ovação. Há aqueles que tendem a monopolizar a conversa. Há os terroristas retóricos, espalhando veneno e deitando combustível sobre a ardente arena verbal. Há os terroristas institucionais que tentam sempre dar organização e disciplina ao debate, impondo regras, constituições, apontamentos, tudo o que no fim não é nada seguido. Outros saem sempre mais cedo com uma desculpa esfarrapada, que não é necessário porque não há culpa nenhuma em sair. Alguns fumam. Há um uzbeque que vem sempre de fato e gravata. O francês não larga o capacete da mota que acabou de comprar.
Variamos nas temáticas. Houve uma Quinta-feira em que discutimos a relação entre o clima e o desenvolvimento. Outra em que se falou de Caxemira. Noutra semana falou-se do fim da História. Ontem foi noite de poesia. Geralmente, tendo em conta o facto de que participam principalmente estudantes do sexo masculino, a conversa descamba no fértil terreno da sexualidade e do trivial, como hábitos sociais, vestuário, gastronomia.
Ontem, por exemplo, participaram, um norte-americano, um uzbeque, uma bangladeshi, um moçambicano, um auto-proclamado caxemire, dois franceses, um nepalês, eu, um vietnamês, um indiano, e mais alguns de que não me lembro. Quando olhei para o relógio passava da uma. É o Thursday Forum, a tertúlia que iniciei e que vejo com os bons olhos com os que um pai supostamente vê um filho seu. Todas as Quintas-feiras a minha vida em Deli realiza-se um pouco mais, em Nova Deli.

Vira-se. Olha-me com toda a ferocidade e ódio em conjunto que jamais testemunhei na minha vida. Movimenta-se lentamente em minha direcção, olha-me nos olhos, as orelhitas está arrebitadas satanicamente. Mostro medo, viro-me eu em direcção à escada. Vejo que a minha amiga – curiosa – vem a subir. O macaco aproxima-se, ganha velocidade, com as duas mãos apoiadas no chão e o impulso das musculadas pernas castanhas. Está a quatro metros. Grito para ela descer. Claro que não compreende, não sei porquê mas certas mulheres têm dificuldade de coordenação motora em momentos de emergência em que urge decidir e agir rapidamente e decididamente. Li um artigo sobre isso na Science. A tese final, no normativo contexto sexista prevalecente, até é mais favorável às mulheres.
Fui ontem ver ao cinema mais uma tentativa de vender Bollywood ao Ocidente. "Bride and Prejudice" é um filme tristemente medíocre onde nem a linda ex-Miss Universe Aishwarya Rai se salva, arrastando-se pesadamente pela tela num tandem com o branco-perdido-entre-indianos Martin Henderson.
Não é por acaso que por muitos amigos meus era conhecido como "cata-vento", a beber um pouco de tudo, num relativismo às vezes cego mas tão enriquecedor. Prefiro ver-me como camaleão daltónico, que observa a realidade erradamente (diferentemente) e consequentemente não se adapta, como talvez gostaria, no fundo, mas se diferencia, às vezes excessivamente. Mas, em memória dessa alcunha, escrevi um poema, talvez o meu primeiro.
No outro dia reparei numa estudante coreana e na brilhante lágrima que escorria do seu canto do olho direito, enquanto a cabeça inclinada perseguia o azul e o vermelho que cobriam aquele aparelho voador direccionado a Seul.