domingo, 29 de outubro de 2006
Chhath
Há três dias que acordo antes das seis da manhã, sempre que passa uma procissão hindu por debaixo da minha janela. Hoje, Domingo, foi ainda mais barulhento, mas um pouco mais tarde, pelas sete da manhã, com trombones, trompetes e tambores: é o culminar do festival "Chhath", em que, especialmente no Norte da Índia em estados como o de Biar e de Utar Pradexe, os crentes celebram o Sol como divindade. Já agora: Aceitam-se sugestões para a transcrição de "Chhath" para o português, na série "Redescobrindo". Chato, não é?
Redescobrindo: Dálitas
Ora cá me enfrentei com mais uma dificuldade ao escrever um artigo para o Expresso sobre o fenómeno da "intocabilidade" na Índia. Dúvida: como é que me vou referir aos excluídos do sistema de castas indiano? Chamados pelos britânicos de “intocáveis”, por Gandhi de “harijans” (filhos de Deus) e por Ambedkar de “dalits” (oprimidos), a designação oficial é “scheduled castes” (castas recenseadas).
Nem o Livro de Estilo do Público, nem as pesquisas do Google me puderam ajudar. Por duas razões, mais uma vez demonstradoras da falta de conhecimento português sobre a Índia. Primeiro, há pouca coisa escrita sobre a sociedade indiana. Há a Rosa Maria Perez, do ISCTE, mas que se tem concentrado mais sobre as populações tribais. Os poucos novos investigadores portugueses que por cá andam tendem a limitar-se a Goa, onde os "dalits" não fazem parte da agenda política e, quando presentes na sociedade, são conhecidos por outros nomes. Segundo, nas raras ocasiões em que algum jornal noticia o assunto, limita-se a descrevê-los como "intocáveis" ou, num facilitismo primário que já tantas vezes critiquei aqui, transcreve o "dalits" do inglês e utiliza-o assim, com ou sem aspas!
O conceito de "intocável" estava fora de questão, porque os próprios recusam esse termo e acham-no derrogatório. Ninguém o usa, aliás, na Índia. Nem a imprensa estrangeira de qualidade. Portanto, não querendo polvilhar o meu texto com aspas, nem querendo enclausurar o conceito central do texto numas ambíguas aspas, restou-me inovar e trasncrever o "dalit/s" para um português "dálitas".
"Ah e tal, mas nós sempre usamos intocáveis e se usares dálitas ninguém compreende" diz-me um amigo. "Ah e tal não", respondo. Estou farto desses "Ahs e táis". Se a história não nos apresenta termos adequados, então há que inovar, e não sucumbir ao facilitismo das aspas e a estrangeirismos não-esclarecidos. Arrisquei e inovei, transcrevendo, de acordo com a fonética do vernacular indiano e uso anglófono: o dálita, os dálitas (e.g.: o movimento dálita, a mulher dálita, os movimentos dálitas, as dálitas convertidas).
Para quem acompanha esta série já foi avisado: estes são exercícios de redescoberta de nomenclatura e conceitos indianos. Servem, portanto, para um debate alargado em que espero ler mais (e, se justificado, outras) opiniões.
Nem o Livro de Estilo do Público, nem as pesquisas do Google me puderam ajudar. Por duas razões, mais uma vez demonstradoras da falta de conhecimento português sobre a Índia. Primeiro, há pouca coisa escrita sobre a sociedade indiana. Há a Rosa Maria Perez, do ISCTE, mas que se tem concentrado mais sobre as populações tribais. Os poucos novos investigadores portugueses que por cá andam tendem a limitar-se a Goa, onde os "dalits" não fazem parte da agenda política e, quando presentes na sociedade, são conhecidos por outros nomes. Segundo, nas raras ocasiões em que algum jornal noticia o assunto, limita-se a descrevê-los como "intocáveis" ou, num facilitismo primário que já tantas vezes critiquei aqui, transcreve o "dalits" do inglês e utiliza-o assim, com ou sem aspas!
O conceito de "intocável" estava fora de questão, porque os próprios recusam esse termo e acham-no derrogatório. Ninguém o usa, aliás, na Índia. Nem a imprensa estrangeira de qualidade. Portanto, não querendo polvilhar o meu texto com aspas, nem querendo enclausurar o conceito central do texto numas ambíguas aspas, restou-me inovar e trasncrever o "dalit/s" para um português "dálitas".
"Ah e tal, mas nós sempre usamos intocáveis e se usares dálitas ninguém compreende" diz-me um amigo. "Ah e tal não", respondo. Estou farto desses "Ahs e táis". Se a história não nos apresenta termos adequados, então há que inovar, e não sucumbir ao facilitismo das aspas e a estrangeirismos não-esclarecidos. Arrisquei e inovei, transcrevendo, de acordo com a fonética do vernacular indiano e uso anglófono: o dálita, os dálitas (e.g.: o movimento dálita, a mulher dálita, os movimentos dálitas, as dálitas convertidas).
Para quem acompanha esta série já foi avisado: estes são exercícios de redescoberta de nomenclatura e conceitos indianos. Servem, portanto, para um debate alargado em que espero ler mais (e, se justificado, outras) opiniões.
Conversões em massa entre os ‘intocáveis’ (Expresso)
Como resumir em menos de uma página uma questão tão complexa como o sistema de castas hindu, o martírio dos seus excluídos dálitas ("intocáveis") e a actual polémica das coversões na Índia? E tudo isto, para leitores de um semanário no país com a mais baixa taxa de leitura de jornais na Europa e em que a maioria confunde a religião (hindu) com a língua (hindi) é terá dificuldades em apontar a capital do país em questão. Mas, afinal, o que interessa é trazer a Índia e a sua actualidade para a agenda portuguesa. Nota: a frase introdutória (de autoria editorial) afirma obviamente uma inverdade: os dálitas não são a "mais baixa das castas indianas", porque estão *fora* do sistema de castas.
Expresso, 22 de Outubro 2006
Conversões em massa entre os ‘intocáveis’
Os dálitas, ou ‘intocáveis’, a mais baixa das castas indianas, estão a abandonar o hinduísmo para se converterem ao cristianismo e ao budismo
Por toda a Índia, milhões de ‘intocáveis’ celebram este mês o 50º aniversário da conversão do seu falecido líder histórico, o jurista B. R. Ambedkar, ao budismo. Marginalizados há séculos pela hierarquia hindu, procuram afirmação política e social convertendo-se em massa a outras religiões - cristianismo e budismo - provocando a ira dos nacionalistas hindus.
Especialmente no mundo rural, são frequentes os casos em que os dálitas (como preferem ser chamados) são impedidos de aceder a poços de água comuns, proibidos de entrar em espaços públicos e assassinados por casarem com parceiros de castas superiores. Segundo a tradição hindu, as castas evoluíram a partir do corpo divino - os sacerdotes brâmanes da cabeça, os guerreiros xátrias dos braços, os comerciantes vaixás das coxas e, finalmente, os trabalhadores sudras dos pés. Só os ‘intocáveis’ ficaram de fora, impedidos de aspirar à reincarnação.
Mas com a independência e a adopção de um sistema democrático, em 1947, centenas de milhares de dálitas optaram pela conversão. O movimento ganhou novo vigor nos últimos anos e, no sábado passado, converteram-se mais de dois mil ao budismo e ao cristianismo na cidade de Nagpur, no centro do país.
O encontro realizou-se sob fortes medidas de segurança, porque as conversões são condenadas pelos nacionalistas hindus, cujas organizações mais radicais acusam os líderes dálitas, missionários cristãos e monges budistas de interesses dúbios. Nos Estados onde o partido nacionalista do Bharatiya Janata Party forma governo (Rajastão, Guzerate e Madia Pradexe), já foram adoptadas leis que proíbem ou limitam as conversões, impondo, por exemplo, autorização policial prévia.
A Igreja Católica, com uma extensa rede de educação e de apoio social no país, já fez ouvir o seu protesto. Para Henry D’Souza, da Conferência Episcopal Católica da Índia, as conversões são “um sinal positivo de que os dálitas se estão a afirmar, abraçando o direito fundamental da liberdade religiosa num país laico e democrático”. Ao Expresso, o padre recordou que religiosos católicos têm sido alvo de diversos ataques e perseguições, mas afirmam que “nada nos poderá demover de realizar a nossa responsabilidade para com os dálitas”.
correspondente em Nova Deli
Constantino Xavier
OS FACTOS
- Os dálitas (ou intocáveis) são 167 milhões, cerca de 16% da população indiana
- A maioria (60%) vive em cinco dos 29 Estados da Índia
- Vivem de actividades consideradas ‘impuras’, como a recolha do lixo, limpeza de latrinas, abate de animais e transporte de cadáveres
- O seu líder histórico, B.R. Ambedkar, doutorou-se em 1916 pela Universidade de Columbia (EUA) e é considerado o ‘arquitecto’ da Constituição Indiana
- A Constituição concede-lhes uma quota de 15% na administração pública, educação e em todas as eleições
TRÊS PERGUNTAS A
Udit Raj, presidente do Partido Indiano da Justiça
P Por que é que os dálitas se estão a converter?
R Queremos libertar-nos da discriminação imposta pelo sistema de castas. Abandonar o hinduísmo representa a libertação de um sistema que nos sufoca. A conversão é a via mais importante para atingirmos o desenvolvimento sócio-económico.
P Quais as vantagens do budismo e do cristianismo?
R Os dálitas são livres de escolher e exprimir as suas preferências religiosas. Mas o objectivo final é escapar ao estigma da intocabilidade e ser aceite numa comunidade que não nos discrimina por causa do nosso estatuto social e profissional. Ao contrário do hinduísmo, o budismo e o cristianismo oferecem-nos condições de afirmação e libertação.
P Há possibilidade de reforma interna ao hinduísmo?
R Ambedkar, o líder histórico dos dálitas, acreditou em reformas pela via constitucional e legal, mas sem sucesso. Hoje, é óbvio que a maioria dos hindus nunca soube respeitar e compreender as reivindicações das secções mais desfavorecidas e exploradas. Não aprenderam a lição e estão a pagar um preço por isso. O nosso movimento é sobretudo social e, por isso, é natural que tenha impacto político e afecte os principais partidos.
Expresso, 22 de Outubro 2006
Conversões em massa entre os ‘intocáveis’
Os dálitas, ou ‘intocáveis’, a mais baixa das castas indianas, estão a abandonar o hinduísmo para se converterem ao cristianismo e ao budismo
Por toda a Índia, milhões de ‘intocáveis’ celebram este mês o 50º aniversário da conversão do seu falecido líder histórico, o jurista B. R. Ambedkar, ao budismo. Marginalizados há séculos pela hierarquia hindu, procuram afirmação política e social convertendo-se em massa a outras religiões - cristianismo e budismo - provocando a ira dos nacionalistas hindus.
Especialmente no mundo rural, são frequentes os casos em que os dálitas (como preferem ser chamados) são impedidos de aceder a poços de água comuns, proibidos de entrar em espaços públicos e assassinados por casarem com parceiros de castas superiores. Segundo a tradição hindu, as castas evoluíram a partir do corpo divino - os sacerdotes brâmanes da cabeça, os guerreiros xátrias dos braços, os comerciantes vaixás das coxas e, finalmente, os trabalhadores sudras dos pés. Só os ‘intocáveis’ ficaram de fora, impedidos de aspirar à reincarnação.
Mas com a independência e a adopção de um sistema democrático, em 1947, centenas de milhares de dálitas optaram pela conversão. O movimento ganhou novo vigor nos últimos anos e, no sábado passado, converteram-se mais de dois mil ao budismo e ao cristianismo na cidade de Nagpur, no centro do país.
O encontro realizou-se sob fortes medidas de segurança, porque as conversões são condenadas pelos nacionalistas hindus, cujas organizações mais radicais acusam os líderes dálitas, missionários cristãos e monges budistas de interesses dúbios. Nos Estados onde o partido nacionalista do Bharatiya Janata Party forma governo (Rajastão, Guzerate e Madia Pradexe), já foram adoptadas leis que proíbem ou limitam as conversões, impondo, por exemplo, autorização policial prévia.
A Igreja Católica, com uma extensa rede de educação e de apoio social no país, já fez ouvir o seu protesto. Para Henry D’Souza, da Conferência Episcopal Católica da Índia, as conversões são “um sinal positivo de que os dálitas se estão a afirmar, abraçando o direito fundamental da liberdade religiosa num país laico e democrático”. Ao Expresso, o padre recordou que religiosos católicos têm sido alvo de diversos ataques e perseguições, mas afirmam que “nada nos poderá demover de realizar a nossa responsabilidade para com os dálitas”.
correspondente em Nova Deli
Constantino Xavier
OS FACTOS
- Os dálitas (ou intocáveis) são 167 milhões, cerca de 16% da população indiana
- A maioria (60%) vive em cinco dos 29 Estados da Índia
- Vivem de actividades consideradas ‘impuras’, como a recolha do lixo, limpeza de latrinas, abate de animais e transporte de cadáveres
- O seu líder histórico, B.R. Ambedkar, doutorou-se em 1916 pela Universidade de Columbia (EUA) e é considerado o ‘arquitecto’ da Constituição Indiana
- A Constituição concede-lhes uma quota de 15% na administração pública, educação e em todas as eleições
TRÊS PERGUNTAS A
Udit Raj, presidente do Partido Indiano da Justiça
P Por que é que os dálitas se estão a converter?
R Queremos libertar-nos da discriminação imposta pelo sistema de castas. Abandonar o hinduísmo representa a libertação de um sistema que nos sufoca. A conversão é a via mais importante para atingirmos o desenvolvimento sócio-económico.
P Quais as vantagens do budismo e do cristianismo?
R Os dálitas são livres de escolher e exprimir as suas preferências religiosas. Mas o objectivo final é escapar ao estigma da intocabilidade e ser aceite numa comunidade que não nos discrimina por causa do nosso estatuto social e profissional. Ao contrário do hinduísmo, o budismo e o cristianismo oferecem-nos condições de afirmação e libertação.
P Há possibilidade de reforma interna ao hinduísmo?
R Ambedkar, o líder histórico dos dálitas, acreditou em reformas pela via constitucional e legal, mas sem sucesso. Hoje, é óbvio que a maioria dos hindus nunca soube respeitar e compreender as reivindicações das secções mais desfavorecidas e exploradas. Não aprenderam a lição e estão a pagar um preço por isso. O nosso movimento é sobretudo social e, por isso, é natural que tenha impacto político e afecte os principais partidos.
terça-feira, 24 de outubro de 2006
Fila indiana
Festa de anos, ontem, de uma amiga, numa sala algures no campus. Uma dezena e meia de amigos, a maioria dos quais íntimos, um pouco de música e bebida. Alguns dançam, outros conversam. Ligo a televisão e vejo um pouco de O Senhor dos Anéis.
Um primo de um amigo qualquer aproxima-se e lança, sarcasticamente, sorrindo: "Então, estás a querer dar cabo da festa?". Aliado aos insistentes, coercivos e mesmo fisicamente violentos pedidos para os não-dançantes se juntarem aos dançantes, é um típico sintoma do comunitarismo indiano: a individualidade, a liberdade de escolha e a singularidade pessoal são simplesmente inexistentes.
Não é novidade para mim. Nos serões festivos nos palacetes indo-portugueses de Goa não era muito diferente. Menor ainda, envergonhado pela minha ignorância dançante tão típica de um diaspórico desenraízado, era alvo dos piores arrastões para o meio da pista dançante, seja pela avó ou por uma prima qualquer. "Mas eu não sei dançar!", exclamava, desconhecendo ainda estratégias retóricas mais sofisticadas a que recorro hoje ("não me apetece"). Não interessava. O que interessava era forçar a ovelha preta para dentro do rebanho.
Resumo da discussão que depois se prolongou, noite dentro, cá por casa: por um lado, é um aspecto positivo. Em vez de excluir e discriminar o "outro", os esforços são dirigidos á sua inclusão e assimilação. É também uma medida de compaixão: estender a mão ao que tem dificuldades em se integrar na corrente maioritária.
Mas, por outro lado, o espírito de inclusão e de compaixão transformam-se rapidamente em manobras comunitaristas visando a homogenização e rendição forçada do outro. É a recusa da diferença e da liberdade individual de escolha. Nela, a maioria vê uma dissidência e uma afronta à sua base de legitimação: quem está a ver televisão está conscientemente a provocar a erosão da legitimidade da comunidade homogénea dos dançantes.
É um sentimento intrínseco à maioria dos indianos. Muitos argumentam o contrário e celebram a pluralidade e a liberdade individual, bem como cultura de argumentação, que permeiam a sociedade indiana. Talvez haja elementos que o justifiquem. Mas nada de absolutos, por favor. Para quem anda por cá, nem que por uns poucos dias, observa imediatamente que esta é, acima de tudo, uma sociedade organizada à volta de princípios axiomáticos de tons extremamente dogmáticos, em que as verdades são para ser seguidas e executadas em... fila indiana.
Um primo de um amigo qualquer aproxima-se e lança, sarcasticamente, sorrindo: "Então, estás a querer dar cabo da festa?". Aliado aos insistentes, coercivos e mesmo fisicamente violentos pedidos para os não-dançantes se juntarem aos dançantes, é um típico sintoma do comunitarismo indiano: a individualidade, a liberdade de escolha e a singularidade pessoal são simplesmente inexistentes.
Não é novidade para mim. Nos serões festivos nos palacetes indo-portugueses de Goa não era muito diferente. Menor ainda, envergonhado pela minha ignorância dançante tão típica de um diaspórico desenraízado, era alvo dos piores arrastões para o meio da pista dançante, seja pela avó ou por uma prima qualquer. "Mas eu não sei dançar!", exclamava, desconhecendo ainda estratégias retóricas mais sofisticadas a que recorro hoje ("não me apetece"). Não interessava. O que interessava era forçar a ovelha preta para dentro do rebanho.
Resumo da discussão que depois se prolongou, noite dentro, cá por casa: por um lado, é um aspecto positivo. Em vez de excluir e discriminar o "outro", os esforços são dirigidos á sua inclusão e assimilação. É também uma medida de compaixão: estender a mão ao que tem dificuldades em se integrar na corrente maioritária.
Mas, por outro lado, o espírito de inclusão e de compaixão transformam-se rapidamente em manobras comunitaristas visando a homogenização e rendição forçada do outro. É a recusa da diferença e da liberdade individual de escolha. Nela, a maioria vê uma dissidência e uma afronta à sua base de legitimação: quem está a ver televisão está conscientemente a provocar a erosão da legitimidade da comunidade homogénea dos dançantes.
É um sentimento intrínseco à maioria dos indianos. Muitos argumentam o contrário e celebram a pluralidade e a liberdade individual, bem como cultura de argumentação, que permeiam a sociedade indiana. Talvez haja elementos que o justifiquem. Mas nada de absolutos, por favor. Para quem anda por cá, nem que por uns poucos dias, observa imediatamente que esta é, acima de tudo, uma sociedade organizada à volta de princípios axiomáticos de tons extremamente dogmáticos, em que as verdades são para ser seguidas e executadas em... fila indiana.
segunda-feira, 23 de outubro de 2006
sábado, 21 de outubro de 2006
Divali na Casa Branca
Um gesto simpático e pluralista, ou mais um passo em direcção ao meramente estético e politicamente correcto, agora do outro lado do Atlântico? Para mim, a perspectiva mais interessante é a diaspórica: é provável que os indianos estejam mais enraízados na Casa Branca do que qualquer outra comunidade imigrante, judeus à parte. Ainda por cima, o artigo não refere nenhuma celebração do Ano Novo Chinês, ou outra data auspiciosa para os chineses.
WASHINGTON: The White House celebrated Diwali, the Indian festival of lights, with more than 150 guests attending, among them many prominent members of the Indian American community. In his special message to the Indian community, President George W. Bush said: "Every year during Diwali, Hindus remember their many blessings and celebrate their hope for a brighter future. The festival of lights demonstrates the rich history and traditions of the Hindu faith as friends and family come together in a spirit of love and joy. "This celebration unites people around the world in goodwill and reminds us of the many cultures that enrich our nation."
WASHINGTON: The White House celebrated Diwali, the Indian festival of lights, with more than 150 guests attending, among them many prominent members of the Indian American community. In his special message to the Indian community, President George W. Bush said: "Every year during Diwali, Hindus remember their many blessings and celebrate their hope for a brighter future. The festival of lights demonstrates the rich history and traditions of the Hindu faith as friends and family come together in a spirit of love and joy. "This celebration unites people around the world in goodwill and reminds us of the many cultures that enrich our nation."
Divali
É o meu terceiro Divali em terras indianas. O festival hindu das luzes, como é conhecido, celebra a mitologia do regresso do príncipe (e deus) Rama à cidade de Aiôdia (Ayodhya), hoje no Utar Pradexe, depois de derrotar o demónio Ravana e libertar a princesa Sita das suas garras. A longa batalha realiza-se no Sri Lanka, e Rama conta com a ajuda de Hanuman e o seu exército de macacos. Astuto, Rama anunciou que o Mal só poderia voltar à superfície no dia em que se celebra o Divali. Nunca, portanto. É que o feriado é símbolo religioso de luz e barulho, com muitas velas à volta de cada casa, não vá o demónio entrar por uma janela ou porta mais escura. Muito barulho, aliás. O Divali tornou-se, acima de tudo, numa orgia pirotécnica. Começa dias antes e prolonga-se por toda a próxima semana, mas o pico é esta noite. Do mais pequeno aos gigantescos e ensurdecedores petardos e foguetes, vale tudo, a qualquer hora do dia ou da noite.
Se o barulho me põe um pouco nervoso, já o espírito do Divali é, simplesmente, avassalador. Conquista tudo e todos. Para quem está tanto tempo longe de terras cristãs, não há comparação melhor do que o espírito natalício. Para bem, com as famílias em reunião e a troca de presentes, para além do êxtase de cores, sons e movimentos que conquistam e transformam a cidade. Para mal, com o trânsito mais caótico do que nunca, os estabelecimentos comerciais inundados e um consumismo em massa (Deli tem doze milhões de habitantes!) tão desenfreado que assustaria e surpeenderia até o mais liberal economista ocidental.
Se o barulho me põe um pouco nervoso, já o espírito do Divali é, simplesmente, avassalador. Conquista tudo e todos. Para quem está tanto tempo longe de terras cristãs, não há comparação melhor do que o espírito natalício. Para bem, com as famílias em reunião e a troca de presentes, para além do êxtase de cores, sons e movimentos que conquistam e transformam a cidade. Para mal, com o trânsito mais caótico do que nunca, os estabelecimentos comerciais inundados e um consumismo em massa (Deli tem doze milhões de habitantes!) tão desenfreado que assustaria e surpeenderia até o mais liberal economista ocidental.
Alívio climático
Chegou o dia mais apreciado do ano, para quem vive em Deli. O calor abandonou a cidade e chegou o frio. Parece simplista, mas não é. Há um momento x, claramente definível, em que os dois parecem chegar a acordo. De repente, de um dia para o outro, as ventoínhas páram, as janelas permanecem fechadas, os mosquitos desaparecem e passa-se a dormir melhor.
Ao terceiro ano na cidade, passou a ser um momento de celebração ritual para mim também: retirar as camisolas e os cobertores que, envegonhados e poeirentos, permanecem escondidos na profundidade dos armários. A tremenda amplitude e choque que marcam o clime de Deli ficam, aliás, melhor expressos pelo minha própria reacção, quando, no pico do verão, me deparo com as lãs e luvas amontoadas: incrédulo e anestesiado pelo ardente calor e humidade, recuso-me a aceitar que jamais o clima desta cidade poderá exigir de mim o uso daquelas pesadas peças vestuárias. Poucos meses depois, passa-se o oposto: tremendo de frio e agachado à frente do aquecedor, deparo-me com a enorme quantidade de t-shirts, sandálias e calções avolumados no mesmo armário e recuso aceitar que jamais o clima desta cidade poderá exigir de mim tanta leveza e frescura de vestimentos.
Ao terceiro ano na cidade, passou a ser um momento de celebração ritual para mim também: retirar as camisolas e os cobertores que, envegonhados e poeirentos, permanecem escondidos na profundidade dos armários. A tremenda amplitude e choque que marcam o clime de Deli ficam, aliás, melhor expressos pelo minha própria reacção, quando, no pico do verão, me deparo com as lãs e luvas amontoadas: incrédulo e anestesiado pelo ardente calor e humidade, recuso-me a aceitar que jamais o clima desta cidade poderá exigir de mim o uso daquelas pesadas peças vestuárias. Poucos meses depois, passa-se o oposto: tremendo de frio e agachado à frente do aquecedor, deparo-me com a enorme quantidade de t-shirts, sandálias e calções avolumados no mesmo armário e recuso aceitar que jamais o clima desta cidade poderá exigir de mim tanta leveza e frescura de vestimentos.
Imagens de Deli: Coronation Memorial
Jovens jogadores de críquete em frente ao Coronation Memorial, que marca o local da cerimónia de coroação do rei Jorge V e da raínha Maria, em Dezembro de 1911, perante uma gigantesca audiência da nobreza indiana. Ficou conhecido como Delhi Durbar e não é por acaso que a inscrição no monumento só está em inglês e urdu (escrita árabe): procurando nova legitimação perante os autóctones colonizados, a coroa britânica passou a simbolizar o poder real dos móguis também, construindo o seu poder e a sua legitimidade sobre as ruínas das dinastias islâmicas da Índia que derrotaram em finais do século XIX. O fenómeno também teve expressão geográfica, sendo que durante a cerimónia foi também anunciada a transferência da capital da Índia Britânica de Calcutá para Deli.
segunda-feira, 16 de outubro de 2006
Aldrabando: Notas velhas
É a estratégia primária da aldrabagem na Índia: tentar ver-se livre de notas velhas, cortadas, rasuradas, pintadas e desfeitas. A táctica é simples: fazer de conta que nos estão a fazer um favor, dando muitas notas pequenas para nos munirem de troco, mas, escondida no meio, está a tal ovelha negra, toda esburacada por agrafos, com um canto cortado ou tão velha que nem Akbar ou D. Francisco de Almeida a aceitariam. Solução: um zoom óptico a todas as notas e depois virá-las a contrário e repetir o zoom. Caso seja tarde de mais, e já se esteja longe de mais para a devolver, ir a um banco e pedir que a troquem (insistir!).
Vamos a um estudo de caso, que não é necessariamente uma aldraagem, mas uma variante interessante: A conta no restaurante é de 90 Rupias. Entrego uma nota de cem. O que é que o empregado faz: nos bastidores, pede ao patrão que lhe dê a nota de 10 Rupias mais velha e ranhosa que está na caixa. Entrega-me o troco (a tal nota de 10) e o recibo com um respeitoso 'obrigado' e um sorriso. Ele sabe: não quero ter aquela nota, mas, caso tenha planeado não lhe dar gorjeta, agora também não terei coragem para lhe pedir que a substitua. Portanto, acaba de fazer 10 Rupias que, por mais esburacadas que sejam, se juntarão às centenas que deve guardar na sua meia, por debaixo da cama, à espera do dia D em que vão de excursão ao banco.
Vamos a um estudo de caso, que não é necessariamente uma aldraagem, mas uma variante interessante: A conta no restaurante é de 90 Rupias. Entrego uma nota de cem. O que é que o empregado faz: nos bastidores, pede ao patrão que lhe dê a nota de 10 Rupias mais velha e ranhosa que está na caixa. Entrega-me o troco (a tal nota de 10) e o recibo com um respeitoso 'obrigado' e um sorriso. Ele sabe: não quero ter aquela nota, mas, caso tenha planeado não lhe dar gorjeta, agora também não terei coragem para lhe pedir que a substitua. Portanto, acaba de fazer 10 Rupias que, por mais esburacadas que sejam, se juntarão às centenas que deve guardar na sua meia, por debaixo da cama, à espera do dia D em que vão de excursão ao banco.
Aldrabando (intro)
Depois da série "Redescobrindo" em que procuro discutir criticamente a transcrição de localidades e de conceitos indianos para o português (embora me tenha ficado pelo "Nova Deli") e depois da série "Imagens de Deli" em que partilho fotografias da Índia e redondezas, vem aí uma nova série, dedicada ao tema preferido dos turistas na Índia: as 1001 formas de ser aldrabado, enganado e intrujado por estas bandas, "Aldrabando". Serve de curiosidade, mas também de pedagogia a quem por aqui anda ou vier a andar.
Vêm aí as eleições
É o momento alto do ano universitário: as eleições para a Associação de Estudantes (Students' Union, JNUSU) da minha universidade. É também, por mais incrível que possa parecer para ocidentais, um dos momentos altos da "maior democracia do mundo", um dos momentos políticos anuais mais relevantes da Índia.
Já aqui muito escrevi sobre o fenómeno, um dos mais emocionantes e fascinantes que eu jamais testemunhei. Talvez o exemplo mais simbólico é o facto de um ex-presidente da JNUSU (1994-95), Chandrashekhar Prasad, ter sido assassinado em campanha política no estado de Bihar. Tenho sempre a sensação que as eleições (e a vida política na universidade, em geral) são um proceso simplesmente indescritível e que é preciso estar cá para o viver e compreender. Mas esta reportagem, de um ex-colega meu norte-americano, é uma excelente descrição para quem quer ter uma ideia mais próxima, mesmo que distante.
On election day, the maroon tent from the presidential debate reappears on the School of International Studies lawn. In the evening, inside the building, the election committee counts votes while, outside, close to 1000 students gather after hostel messes close at nine to feast on snacks from ‘transplanted’ dhabas. They congregate as ABVP, AISA, SFI and NSUI supporters. Election results will be released in stages over the next 24 hours...
Já aqui muito escrevi sobre o fenómeno, um dos mais emocionantes e fascinantes que eu jamais testemunhei. Talvez o exemplo mais simbólico é o facto de um ex-presidente da JNUSU (1994-95), Chandrashekhar Prasad, ter sido assassinado em campanha política no estado de Bihar. Tenho sempre a sensação que as eleições (e a vida política na universidade, em geral) são um proceso simplesmente indescritível e que é preciso estar cá para o viver e compreender. Mas esta reportagem, de um ex-colega meu norte-americano, é uma excelente descrição para quem quer ter uma ideia mais próxima, mesmo que distante.
On election day, the maroon tent from the presidential debate reappears on the School of International Studies lawn. In the evening, inside the building, the election committee counts votes while, outside, close to 1000 students gather after hostel messes close at nine to feast on snacks from ‘transplanted’ dhabas. They congregate as ABVP, AISA, SFI and NSUI supporters. Election results will be released in stages over the next 24 hours...
Imagens de Deli: Macacos
domingo, 15 de outubro de 2006
Homi Bhabha
No blog da Revista Atlântico, um apontamento meu sobre a palestra de Homi Bhabha na Fundação Gulbenkian.
Infantilidades (ou Wachstumskraempfe)
India spotted Yunus before Nobel panel
"NEW DELHI: Long before the Nobel committee, India recognised Mohammad Yunus and the pioneering work of his Grameen Bank in popularising the concept of micro credit in Bangladesh. This year's Nobel Peace Prize winner was the recipient of the Indira Gandhi Award for Peace, Disarmament and Development in 1998."
"NEW DELHI: Long before the Nobel committee, India recognised Mohammad Yunus and the pioneering work of his Grameen Bank in popularising the concept of micro credit in Bangladesh. This year's Nobel Peace Prize winner was the recipient of the Indira Gandhi Award for Peace, Disarmament and Development in 1998."
Está tudo na imagem
Shashi Tharoor, brilhante diplomata indiano, perdeu a corrida para o posto de Secretário-Geral das Nações Unidas. Embora não ferida, a Índia interroga-se: porquê um pequeno sul-coreano, em vez do nosso gigante? Para além de todas as geopolíticas dos bastidores da diplomacia, há duas razões principais: primeiro, a Índia já é muito crescidinha para aspirar a um posto daqueles que só é entregue a mãos periféricas e pouco perigosas como as são as norueguesas, birmanesas ou ganesas. Deve, portanto, ver a derrota com bons olhos. O resto do mundo, e a China e os Estados Unidos em particular, já a vêem com outros olhos. Segundo, está tudo na imagem. Por mais genial que o homem seja (bom escritor, por sinal), como é que ele sonha liderar as Nações Unidas com a peculiar estética que espelha na suas fotografias? A cara diz tudo. É um homem que nunca teria sido um bom Secretário-Geral.
Conversões
Thousands of people have been attending mass ceremonies in India at which hundreds of low-caste Hindus (Dalits) converted to Buddhism and Christianity.
Para compreender uma das razões que levam estes "intocáveis" a converterem-se, ver esta excelente reportagem, da revista Frontline, sobre os limpadores de latrinas ("manual scavangers").
Para compreender uma das razões que levam estes "intocáveis" a converterem-se, ver esta excelente reportagem, da revista Frontline, sobre os limpadores de latrinas ("manual scavangers").
sexta-feira, 13 de outubro de 2006
Leonor Beleza e Fundação Champalimaud em Deli
Na residência do Embaixador português na Índia, Dr. Joaquim Ferreira Marques, em Nova Deli, tive na segunda-feira oportunidade de me encontrar com a delegação da Fundação Champalimaud que por cá esteve para lançar o "Prémio António Champalimaud" para a saúde, no Palácio Presidencial, na presença do carismático presidente indiano Dr. Abdul Kalam. O artigo e a entrevista integral que fiz a Leonor Beleza podem ser lidos no Expresso Online.
"Em Nova Deli para o lançamento do “Prémio António Champalimaud” para a ciência, a presidente da Fundação Champalimaud, Leonor Beleza, defende que, em termos de investigação científica, a Índia está a par da Europa e dos Estados Unidos e recorda a sua importância na luta global contra a cegueira.
Apresentado pelo Presidente da Índia, Abdul Kalam, esta segunda-feira, em Nova Deli, o prémio, no valor de um milhão de Euros, visa promover projectos de combate à cegueira no terreno e projectos de investigação relacionados com os problemas de visão.
O prémio, a atribuir anualmente a partir de 2007, é promovido em parceria com a Organização Mundial da Saúde e Gullapalli Rao, médico e cientista indiano que fundou o Prasad Eye Institute em Hiderabad. O júri inclui o nobel Amartya Sen, bem como António Guterres e o ex-comissário europeu, Jacques Delors.
Para além da ex-ministra, a delegação da Fundação Champalimaud incluiu também António Borges e João Silveira Botelho, do conselho de administração, bem como António Coutinho, António Travassos, Daniel Proença de Carvalho, João Raposo Magalhães e Pedro d’Abreu Loureiro, todos membros do conselho de curadores."
Ver entrevista com Leonor Beleza.
"Em Nova Deli para o lançamento do “Prémio António Champalimaud” para a ciência, a presidente da Fundação Champalimaud, Leonor Beleza, defende que, em termos de investigação científica, a Índia está a par da Europa e dos Estados Unidos e recorda a sua importância na luta global contra a cegueira.
Apresentado pelo Presidente da Índia, Abdul Kalam, esta segunda-feira, em Nova Deli, o prémio, no valor de um milhão de Euros, visa promover projectos de combate à cegueira no terreno e projectos de investigação relacionados com os problemas de visão.
O prémio, a atribuir anualmente a partir de 2007, é promovido em parceria com a Organização Mundial da Saúde e Gullapalli Rao, médico e cientista indiano que fundou o Prasad Eye Institute em Hiderabad. O júri inclui o nobel Amartya Sen, bem como António Guterres e o ex-comissário europeu, Jacques Delors.
Para além da ex-ministra, a delegação da Fundação Champalimaud incluiu também António Borges e João Silveira Botelho, do conselho de administração, bem como António Coutinho, António Travassos, Daniel Proença de Carvalho, João Raposo Magalhães e Pedro d’Abreu Loureiro, todos membros do conselho de curadores."
Ver entrevista com Leonor Beleza.
Ele sabe (2)
Por ocasião de mais uma cimeira União Europeia-Índia, a realizar-se na capital finlandesa, hoje, publico aqui o artigo no Expresso, de 10 de Setembro do ano passado, relativo à entrevista que conduzi a José Manuel Durão Barroso, por ocasião da sua visita a Deli para uma igual cimeira.
EXPRESSO, Suplemento Economia & Internacional
Edição 1715, 10.09.2005
A prioridade está no Oriente
O presidente da Comissão Europeia diz que China e Índia passaram a ser tema de política interna da Europa
José Manuel Durão Barroso: «Não podemos simplesmente dizer às pessoas: adaptem-se à competição e arrisquem o vosso bem-estar. Temos de lhes dar uma clara perspectiva de futuro. Não podemos tratar os indivíduos como coisas. Esse é o principal desafio. Nós, dentro da União Europeia, queremos uma reforma económica que seja sensível, com preocupações sociais. Temos de explicar aos cidadãos que têm de se adaptar à globalização, mas que, ao mesmo tempo, há um futuro com emprego e repleto de grandes oportunidades»
O ORIENTE é uma das grandes prioridades da União Europeia e, se alguém tinha dúvidas, as duas cimeiras que esta semana se realizaram, em Pequim e Nova Deli, provam-no amplamente. «Do ponto de vista económico e comercial, a China e a Índia estão a tornar ainda mais urgente a necessidade de adaptação da UE à globalização», disse Durão Barroso ao EXPRESSO, numa entrevista conjunta com os dois principais diários indianos, o «Hindu» e o «Hindustan Times».
O prato-forte das negociações - lideradas, pela parte europeia, pelo presidente da Comissão e o primeiro-ministro Tony Blair, presidente em exercício da UE - foi precisamente a galopante emergência económica dos dois gigantes asiáticos, a par dos direitos humanos e da cooperação ambiental, no caso chinês, e da abolição da pena de morte e do controlo da emigração ilegal, no caso indiano.
Segundo Durão Barroso, existe actualmente «o risco do extraordinário crescimento económico da China e da Índia ser visto, na Europa, como umaameaça», sendo certo que «existem alguns países e sectores europeus com dificuldades na adaptação às novas regras da competição internacional».
Mas, afirma, a globalização não deve ser encarada de forma negativa. «Estamos num novo contexto». As preocupações actuais dos europeus podem ser legítimas, mas dissipar-se-ão no futuro: «A globalização é um desafio, mas não uma ameaça. É esta a abordagem que temos no nosso relacionamento com os dois países, torná-los numa oportunidade».
A Índia e a China têm crescido anualmente entre 6% e 10% pelo que, segundo o dirigente europeu, a abertura da UE é inevitável. «Seria um erro trágico se os europeus pensassem que poderiam manter o seu nível de vida fechando-se sobre si mesmos», defende o presidente da Comissão, justificando a necessidade de abertura pela dependência da UE das exportações: «Se a UE quiser que outros se abram, também terá que se abrir mais. Temos de nos adaptar, mas há que lidar com o novo contexto de uma forma construtiva e estabelecer um período de transição para diminuir o impacto.
O texto e o contexto
A questão é tão importante que, segundo Barroso, está no cerne da recente rejeição do Tratado Constitucional europeu por franceses e holandeses. Diz ele que «num referendo, existe sempre o risco de as pessoas votarem no contexto e não no texto, e o contexto é de crescimento lento e de desemprego». É por isso que «o comércio internacional e as relações com a China e a Índia passaram a ser assuntos de política interna europeia».
Embora Javier Solana tenha afirmado em Pequim que «para a UE, a Índia ainda não atingiu a importância da China», Barroso explicou ao EXPRESSO que não gosta de fazer comparações entre os dois gigantes, adiantando que «o sistema político da Índia é diferente do da China» e que «a Índia e a UE partilham fortes valores democráticos».
Referindo-se às recentes renegociações das quotas de importação de têxteis chineses e aludindo à diplomacia norte-americana, Barroso salientou, por outro lado, a estratégia da UE para enfrentar os dois gigantes: «As quotas são uma medida transitória acordada em parceria com a China, enquanto outros preferem impor o unilateralismo».
Entretanto, em Pequim foi tornada pública a resolução do contencioso quanto à importação de têxteis chineses e reiterado o interesse numa maior cooperação económica sino-europeia, Nova Deli assinou pela primeira vez uma declaração política conjunta com Bruxelas.
A Índia e a UE também anunciaram uma nova plataforma de cooperação contra o terrorismo, a entrada da Índia no projecto de navegação por satélite Galileo e a possibilidade dos indianos participarem na construção do novo reactor de fusão nuclear (ITER), a instalar no Sul de França.
Constantino Xavier, correspondente em Nova Deli
EXPRESSO, Suplemento Economia & Internacional
Edição 1715, 10.09.2005
A prioridade está no Oriente
O presidente da Comissão Europeia diz que China e Índia passaram a ser tema de política interna da Europa
José Manuel Durão Barroso: «Não podemos simplesmente dizer às pessoas: adaptem-se à competição e arrisquem o vosso bem-estar. Temos de lhes dar uma clara perspectiva de futuro. Não podemos tratar os indivíduos como coisas. Esse é o principal desafio. Nós, dentro da União Europeia, queremos uma reforma económica que seja sensível, com preocupações sociais. Temos de explicar aos cidadãos que têm de se adaptar à globalização, mas que, ao mesmo tempo, há um futuro com emprego e repleto de grandes oportunidades»
O ORIENTE é uma das grandes prioridades da União Europeia e, se alguém tinha dúvidas, as duas cimeiras que esta semana se realizaram, em Pequim e Nova Deli, provam-no amplamente. «Do ponto de vista económico e comercial, a China e a Índia estão a tornar ainda mais urgente a necessidade de adaptação da UE à globalização», disse Durão Barroso ao EXPRESSO, numa entrevista conjunta com os dois principais diários indianos, o «Hindu» e o «Hindustan Times».
O prato-forte das negociações - lideradas, pela parte europeia, pelo presidente da Comissão e o primeiro-ministro Tony Blair, presidente em exercício da UE - foi precisamente a galopante emergência económica dos dois gigantes asiáticos, a par dos direitos humanos e da cooperação ambiental, no caso chinês, e da abolição da pena de morte e do controlo da emigração ilegal, no caso indiano.
Segundo Durão Barroso, existe actualmente «o risco do extraordinário crescimento económico da China e da Índia ser visto, na Europa, como umaameaça», sendo certo que «existem alguns países e sectores europeus com dificuldades na adaptação às novas regras da competição internacional».
Mas, afirma, a globalização não deve ser encarada de forma negativa. «Estamos num novo contexto». As preocupações actuais dos europeus podem ser legítimas, mas dissipar-se-ão no futuro: «A globalização é um desafio, mas não uma ameaça. É esta a abordagem que temos no nosso relacionamento com os dois países, torná-los numa oportunidade».
A Índia e a China têm crescido anualmente entre 6% e 10% pelo que, segundo o dirigente europeu, a abertura da UE é inevitável. «Seria um erro trágico se os europeus pensassem que poderiam manter o seu nível de vida fechando-se sobre si mesmos», defende o presidente da Comissão, justificando a necessidade de abertura pela dependência da UE das exportações: «Se a UE quiser que outros se abram, também terá que se abrir mais. Temos de nos adaptar, mas há que lidar com o novo contexto de uma forma construtiva e estabelecer um período de transição para diminuir o impacto.
O texto e o contexto
A questão é tão importante que, segundo Barroso, está no cerne da recente rejeição do Tratado Constitucional europeu por franceses e holandeses. Diz ele que «num referendo, existe sempre o risco de as pessoas votarem no contexto e não no texto, e o contexto é de crescimento lento e de desemprego». É por isso que «o comércio internacional e as relações com a China e a Índia passaram a ser assuntos de política interna europeia».
Embora Javier Solana tenha afirmado em Pequim que «para a UE, a Índia ainda não atingiu a importância da China», Barroso explicou ao EXPRESSO que não gosta de fazer comparações entre os dois gigantes, adiantando que «o sistema político da Índia é diferente do da China» e que «a Índia e a UE partilham fortes valores democráticos».
Referindo-se às recentes renegociações das quotas de importação de têxteis chineses e aludindo à diplomacia norte-americana, Barroso salientou, por outro lado, a estratégia da UE para enfrentar os dois gigantes: «As quotas são uma medida transitória acordada em parceria com a China, enquanto outros preferem impor o unilateralismo».
Entretanto, em Pequim foi tornada pública a resolução do contencioso quanto à importação de têxteis chineses e reiterado o interesse numa maior cooperação económica sino-europeia, Nova Deli assinou pela primeira vez uma declaração política conjunta com Bruxelas.
A Índia e a UE também anunciaram uma nova plataforma de cooperação contra o terrorismo, a entrada da Índia no projecto de navegação por satélite Galileo e a possibilidade dos indianos participarem na construção do novo reactor de fusão nuclear (ITER), a instalar no Sul de França.
Constantino Xavier, correspondente em Nova Deli
quinta-feira, 12 de outubro de 2006
Ele sabe
Ora cá está (num artigo no The Hindu) um homem que sabe o que a Europa vai ter que enfrentar no século XXI e que sabe tirar as consequências disso. Dedicado ao projecto europeu, mas sem medo de enfrentar os colossais desafios orientais que se lhe apresentam. Eu já o tinha percebido quando o entrevistei, há um ano, em Deli, por ocasião da cimeira anual União Europeia-Índia (ver post seguinte). Realiza-se mais uma amanhã, em Helsínquia. A observar com muita atenção, porque daqui a um ano é a nossa vez, durante a Presidência portuguesa, numa cimeira que será nada mais, nada menos, do que aqui mesmo, na capital indiana.
terça-feira, 10 de outubro de 2006
Imagens de Deli: Cuspidor
Este é um cuspidor. Infelizmente, é coisa rara na Índia. Mascar paan, com nozes de betel e outras folhas e especiarias o que dá aos dentes um tom vermelho assustador. O pior é comunicar com os mascantes desse "snack" indiano. Como enfiam a folha inteira recheada na boca, e a vão mastigando lentamente, retirando-lhe os divinos líquidos, sabores e odores, torna-se simplesmente impossível manter uma conversa.
O problema é que os mascantes indianos não se dão conta do facto e, enquanto lhes escorre um fio vermelho pelo lábio abaixo e vão cuspindo um ou outro caroço pequeno, falam como se nada fosse. Vamos então ao que mais interessa: as paredes. Sim, uma parede branca ou recém-pintada - e não o Paquistão - o o alvo a abater. Terminado o deleite da mascança dionisíaca, cospem o resto todo (um líquido avermelhado com resíduos) para fora, para onde mais calhar. Por motivos misteriosos, as esquinas das escadarias dos prédios são os locais mais apetecíveis para o acto.
Neste caso (imagem), louvável mas pouco eficiente como se poderá observar, num museu de Varanasi, houve quem colocasse um balde cuspidor. É visível que a pontaria não é muita. Noutras escadarias há insistentes placas, a cada andar, rogando "Don't Spit Here", alguns prometendo mesmo multas. Portanto, quando vierem à Índia, já sabem: cuidem-se do paan e nunca parem mais do que um segundo numa esquina.
O problema é que os mascantes indianos não se dão conta do facto e, enquanto lhes escorre um fio vermelho pelo lábio abaixo e vão cuspindo um ou outro caroço pequeno, falam como se nada fosse. Vamos então ao que mais interessa: as paredes. Sim, uma parede branca ou recém-pintada - e não o Paquistão - o o alvo a abater. Terminado o deleite da mascança dionisíaca, cospem o resto todo (um líquido avermelhado com resíduos) para fora, para onde mais calhar. Por motivos misteriosos, as esquinas das escadarias dos prédios são os locais mais apetecíveis para o acto.
Neste caso (imagem), louvável mas pouco eficiente como se poderá observar, num museu de Varanasi, houve quem colocasse um balde cuspidor. É visível que a pontaria não é muita. Noutras escadarias há insistentes placas, a cada andar, rogando "Don't Spit Here", alguns prometendo mesmo multas. Portanto, quando vierem à Índia, já sabem: cuidem-se do paan e nunca parem mais do que um segundo numa esquina.
domingo, 8 de outubro de 2006
"Brangelina"?
Poupem-me. Anda tudo excitado porque há um casal de estrelas de Hollyood na Índia. Angelina Jolie e Brad Pitt, em Puna. Como se encontram enclausurados num hotel de cinco estrelas (para fugir à histeria e aos batalhões de paparazzi) e como há urgência de satisfazer a economia mediática, nada melhor do que produzir um evento como este. Sem dúvida que o guarda-costas não tem o direito de se comportar como um pit-bull manhoso. Mas colocarem as fotografias do "ataque" ao "inocente" paparazzi na primeira página e, ao mesmo tempo, não escreverem uma única palavra sobre os malabarismos e ilegalidades que os paparazzi têm cometido ao longo dos últimos três dias para violar a privacidade de um casal e lhes tirar uma fotografia, é inaceitável.
"Incidentally, tired of the cat-and-mouse game, the local media has demanded that Brangelina hold a press conference and divulge details about the shooting, after which they are ready to disperse." Afinal agora são os jornalistas a imporem as regras do jogo e a colocarem exigências em forma de chantagem.
E alguém me explica quem é que tem o direito de lhes chamar publicamente "Brangelina"? Lembra a beringela.
"Incidentally, tired of the cat-and-mouse game, the local media has demanded that Brangelina hold a press conference and divulge details about the shooting, after which they are ready to disperse." Afinal agora são os jornalistas a imporem as regras do jogo e a colocarem exigências em forma de chantagem.
E alguém me explica quem é que tem o direito de lhes chamar publicamente "Brangelina"? Lembra a beringela.
Ainda o ranking
E confirma-se o que eu já suspeitava (surpresa?):
"Na lista do Times, constituída pelas 200 universidades que, à luz dos critérios utilizados na avaliação feita pelo jornal, se saíram melhor, não há uma vez mais nenhuma portuguesa. E a primeira espanhola a aparecer é a Universidade de Barcelona (em 190.º lugar, quando no ranking do ano passado não constava sequer da lista das 200).
Este ranking baseia-se numa sondagem a 3703 académicos de todo o mundo a quem é pedido que indiquem aquelas que consideram ser as 30 melhores instituições nas áreas em que são especialistas. Alguns outros indicadores tidos em conta: a opinião dos empregadores; o rácio professor/aluno; a capacidade de atrair estudantes de outros países; e o número de artigos científicos citados." (Público de hoje)
"Na lista do Times, constituída pelas 200 universidades que, à luz dos critérios utilizados na avaliação feita pelo jornal, se saíram melhor, não há uma vez mais nenhuma portuguesa. E a primeira espanhola a aparecer é a Universidade de Barcelona (em 190.º lugar, quando no ranking do ano passado não constava sequer da lista das 200).
Este ranking baseia-se numa sondagem a 3703 académicos de todo o mundo a quem é pedido que indiquem aquelas que consideram ser as 30 melhores instituições nas áreas em que são especialistas. Alguns outros indicadores tidos em conta: a opinião dos empregadores; o rácio professor/aluno; a capacidade de atrair estudantes de outros países; e o número de artigos científicos citados." (Público de hoje)
Inovação, crescimento e emprego
No Público de hoje: 11.ª Conferência Internacional Metropolis sobre migrações, que ontem terminou na Culturgest, em Lisboa. Presidente do Migration Policy Institute, think tank dedicado ao fenónemo migratório Demetrios Papademetriou ao Ocidente (o Norte, pelo menos): "Daqui a 25 anos, partindo do princípio de que o capital se transferiu para a China e Índia, podemos perder os nossos melhores e mais brilhantes cidadãos para esses países. Se tiverem liberdade de movimento, irão para os sítios onde os seus investimentos terão maior retorno. Inovação, crescimento e emprego serão determinados pelos patrões que seleccionam pessoas, não por burocratas."
sexta-feira, 6 de outubro de 2006
JNU em 183º
Que bom saber que estou numa das duzentas melhores universidades do mundo, segundo o ranking do sempre mediático Times Higher Education Supplement, publicado ontem. No entanto, duvido muito dos critérios adoptados e suspeito mesmo alguma manobra de mareketing para facilitar uma futura entrada do grupo Times por estas bandas, ou, pelo menos, correcção política para não ferir susceptibilidades terceiro mundistas. A capa de hoje, no Times of India, parece confirmá-lo.
De qualquer maneira, a Universidade Jawaharlal Nehru (JNU) está em 183º, o que não é nada mau, tendo em conta que uma instituição universitária quase exclusivamente dedicada às ciências sociais. Espero que o meu departamento (Centre for International Politics, Organisation and Disarmament, School of International Studies), considerado dos mais excelentes na JNU, tenha contribuído para o ranking e que por aí, em terras ocidentais, começem a considerar a possibilidade de emergirem rivais "terceiro mundistas", por mais que isso possa ir contra os paradigmas e dogmas prevalecentes.
De qualquer maneira, a Universidade Jawaharlal Nehru (JNU) está em 183º, o que não é nada mau, tendo em conta que uma instituição universitária quase exclusivamente dedicada às ciências sociais. Espero que o meu departamento (Centre for International Politics, Organisation and Disarmament, School of International Studies), considerado dos mais excelentes na JNU, tenha contribuído para o ranking e que por aí, em terras ocidentais, começem a considerar a possibilidade de emergirem rivais "terceiro mundistas", por mais que isso possa ir contra os paradigmas e dogmas prevalecentes.
quinta-feira, 5 de outubro de 2006
Sayida
Já vos tinha aqui falado da Sayida, a nossa empregada de limpeza desde que eu cheguei a Deli, há dois anos. Muçulmana, do paupérrimo estado de Bihar. Talvez se lembrem dos seus dois filhos, Gudu e Ruby, a quem eu, duas vezes por semana, ensinava a ler e a escrever. Entretanto, o Gudu cresceu e abandonou a escola. É aprendiz de mecânico. A Ruby, fruto de dificuldades financeiras, teve que ficar na aldeia natal desde o verão passado. Na cidade custa mais manter uma boca faminta. Depois há o mais velho, o Mohammed Kash. Embora seja parcialmente invisual, é o que mais sucesso teve, dada a ajuda e apoios sociais públicas e privadas. Andou numa escola especial para invisuais, é o único da família que sabe ler e escrever inglês e hindi fluentemente, dá aulas privadas de Tae-kwon Do e participa em competições nacionais de natação para deficientes físicos e parece que já ganhou uma medalha ou outra.
Este post era para escrever sobre a nossa nova empregada, a Leja. Mas a Índia é assim. Obriga-nos a parar e a penetrar detalhes. E, portanto, parece que me fico pela história da Sayida. Pequenina e magrinha, farta-se de trabalhar. É empregada de limpeza em três casas ao mesmo tempo. Não limpa lá muito bem, e está sempre a resmungar. Mas sabe também sorrir e ser amável como poucas pessoas, sempre prestável e sempre tratando-me a mim, e a todos os meus outros companheiros de apartamento durante dois últimos anos, como um filho.
O marido é de alguma forma, misteriosa, incapacitado e só raramente trabalha. Talvez, parece-me, seja alcoólico. Está sempre, sorridente, sentado no canto do quarto que alberga a família. Eles vivem na aldeia de Munirka (Munirka Village ou Munirka Gaon) que contrasta com a "nossa" Munirka, os Munirka DDA Flats, uma zona residencial que para níveis indianos é semi-luxuosa. Numa das claustrofóbicas ruelas em que até um GPS de melhor qualidade de pouco serviria, vira-se umas tantas vezes à direita e à esquerda, para baixo e para cima, até se chegar ao prédio da Sayida, do marido, do Mohammed Kash, do Gudu e da Ruby. Entra-se para um páteo interior para o qual dão diversos quartos pequenos, menores que a maioria das casas-de-banho dos novos apartamentos em Lisboa. É num desses quartos que eles vivem.
Vem isto tudo ao acaso porque a Sayida deixou de aparecer. Como nós lhe pagamos quase o dobro do salário normal e ela se tornou praticamente parte da "família", começamos a estranhar depois de alguns dias. Finalmente, ligou-me o filho mais novo, mas o meu hindi só deu para compreender que ela estava doente. Uns dias depois aventurámo-nos para a aldeia urbana. Pela janela, do páteo, vi-a sorridente. Claro que, logo que ela se apercebeu da nossa chegada, a expressão facial mudou, exprimindo dor e exaustão. De facto, percebemos logo que nos sentámos e nos deram os documentos médicos, Sayida está com tuberculose. Ficámos à conversa por uma meia hora e, responsabilidade de hóspede, fomos obrigados a beber chá e comer uns bicoitos.
As coisas estão mal para a Sayida. Está agora em tratamento, mas parece que a situação não é de gravidade. Mas o tratamento deverá impossibilitá-la laboralmente por vários meses. Vamos então à ultima peça deste trágico, mas tão normal, puzzle de um quotidiano familiar indiano.
Ainda não me referi à filha mais velha (escapa-me o nome), de dezoito anos de idade. Há dois anos que eles tentam arranjar-lhe um casamento. Por duas vezes a Sayida conseguiu um noivo na aldeia natal, juntou um dote considerável (com generosa participção nossa) e partiu por vários meses para a terra, para preparar e realizar o casamento. Da primeira vez, nas vésperas do dia D, o noivo e a família desapareceram com o dote. Da segunda vez, foi tudo abortado quando a família do (segundo) noivo pediu, também nas vésperas, uma televisão e uma mota. A filha mais velha ficou agora na aldeia, a tomar conta da Ruby, sob auspícios dos familiares.
É este um pequeno pedaço da história da vida da Sayida. A história da Leja, que agora substitui a Sayida, fica então para um outro dia.
Este post era para escrever sobre a nossa nova empregada, a Leja. Mas a Índia é assim. Obriga-nos a parar e a penetrar detalhes. E, portanto, parece que me fico pela história da Sayida. Pequenina e magrinha, farta-se de trabalhar. É empregada de limpeza em três casas ao mesmo tempo. Não limpa lá muito bem, e está sempre a resmungar. Mas sabe também sorrir e ser amável como poucas pessoas, sempre prestável e sempre tratando-me a mim, e a todos os meus outros companheiros de apartamento durante dois últimos anos, como um filho.
O marido é de alguma forma, misteriosa, incapacitado e só raramente trabalha. Talvez, parece-me, seja alcoólico. Está sempre, sorridente, sentado no canto do quarto que alberga a família. Eles vivem na aldeia de Munirka (Munirka Village ou Munirka Gaon) que contrasta com a "nossa" Munirka, os Munirka DDA Flats, uma zona residencial que para níveis indianos é semi-luxuosa. Numa das claustrofóbicas ruelas em que até um GPS de melhor qualidade de pouco serviria, vira-se umas tantas vezes à direita e à esquerda, para baixo e para cima, até se chegar ao prédio da Sayida, do marido, do Mohammed Kash, do Gudu e da Ruby. Entra-se para um páteo interior para o qual dão diversos quartos pequenos, menores que a maioria das casas-de-banho dos novos apartamentos em Lisboa. É num desses quartos que eles vivem.
Vem isto tudo ao acaso porque a Sayida deixou de aparecer. Como nós lhe pagamos quase o dobro do salário normal e ela se tornou praticamente parte da "família", começamos a estranhar depois de alguns dias. Finalmente, ligou-me o filho mais novo, mas o meu hindi só deu para compreender que ela estava doente. Uns dias depois aventurámo-nos para a aldeia urbana. Pela janela, do páteo, vi-a sorridente. Claro que, logo que ela se apercebeu da nossa chegada, a expressão facial mudou, exprimindo dor e exaustão. De facto, percebemos logo que nos sentámos e nos deram os documentos médicos, Sayida está com tuberculose. Ficámos à conversa por uma meia hora e, responsabilidade de hóspede, fomos obrigados a beber chá e comer uns bicoitos.
As coisas estão mal para a Sayida. Está agora em tratamento, mas parece que a situação não é de gravidade. Mas o tratamento deverá impossibilitá-la laboralmente por vários meses. Vamos então à ultima peça deste trágico, mas tão normal, puzzle de um quotidiano familiar indiano.
Ainda não me referi à filha mais velha (escapa-me o nome), de dezoito anos de idade. Há dois anos que eles tentam arranjar-lhe um casamento. Por duas vezes a Sayida conseguiu um noivo na aldeia natal, juntou um dote considerável (com generosa participção nossa) e partiu por vários meses para a terra, para preparar e realizar o casamento. Da primeira vez, nas vésperas do dia D, o noivo e a família desapareceram com o dote. Da segunda vez, foi tudo abortado quando a família do (segundo) noivo pediu, também nas vésperas, uma televisão e uma mota. A filha mais velha ficou agora na aldeia, a tomar conta da Ruby, sob auspícios dos familiares.
É este um pequeno pedaço da história da vida da Sayida. A história da Leja, que agora substitui a Sayida, fica então para um outro dia.
quarta-feira, 4 de outubro de 2006
Índia em Frankfurt
Como que por arrasto, depois da dimensão económica e política, é agora a Índia literária que emerge no panorama mundial. Não é novidade per se. Há muito que o subcontinente encarna o fascíneo orientalista dos ocidentais. Mas a descoberta é agora massificada. O lugar de honra no palco dos palcos, a Feira do Livro de Frankfurt, confirma-o.
"Pensamos que há toda uma Índia por descobrir: não é apenas o Taj Mahal, o arroz, Goa ou a cultura hippie. É o país dos media electrónicos, da ciência e da economia. Nós já não reconhecemos aquilo que Herman Hesse (autor de Siddartha em 1922) escreveu. É a maior democracia do mundo que funciona apesar das suas 24 línguas e com pessoas que não se entendem", diz o director da feira, Jürgen Boss, ao Público de hoje.
Uma afirmação que, certamente, está polvilhada de clichés. Mas, afinal, é isso que interessa. Já não são só uma dezena de gatos pingados hippies a repetirem um ou dois clichés sobre a Índia. Agora temos um imenso e plural conjunto de clichés sobre a Índia, constantemente debatidos e postos em causa. Há muito mais no horizonte indiano, para além das pequenas coisas.
Depois dos Estados Unidos e da Grã -Bretanha, a Índia, com 80 mil livros publicados anualmente, ocupa o terceiro lugar a nível mundial na edição de livros em inglês. "A literatura indiana já não é considerada como qualquer coisa de exótico. Ela tornou-se banal nos EUA e na Grã-Bretanha", diz Thomas Abraham presidente da Penguin India, um dos maiores editores do país. Diz bem. A questão é quando é que passará a ser "banal" em Portugal também. E quando é que algum olheiro literário/editorial se lembrará de vir explorar o mercado aqui.
"Pensamos que há toda uma Índia por descobrir: não é apenas o Taj Mahal, o arroz, Goa ou a cultura hippie. É o país dos media electrónicos, da ciência e da economia. Nós já não reconhecemos aquilo que Herman Hesse (autor de Siddartha em 1922) escreveu. É a maior democracia do mundo que funciona apesar das suas 24 línguas e com pessoas que não se entendem", diz o director da feira, Jürgen Boss, ao Público de hoje.
Uma afirmação que, certamente, está polvilhada de clichés. Mas, afinal, é isso que interessa. Já não são só uma dezena de gatos pingados hippies a repetirem um ou dois clichés sobre a Índia. Agora temos um imenso e plural conjunto de clichés sobre a Índia, constantemente debatidos e postos em causa. Há muito mais no horizonte indiano, para além das pequenas coisas.
terça-feira, 3 de outubro de 2006
Quem é ele?
domingo, 1 de outubro de 2006
Eu já tinha avisado
Está tudo a alinhar-se. Onde há fumo, há fogo. Eu bem que dizia. Isto vai animar (um eufemismo) ou explodir (uma hipérbole):
In a declaration likely to increase tensions on this subcontinent, the Indian police on Saturday accused Pakistan’s intelligence agency of being behind the July 11 train bombings that killed more than 180 people in Mumbai.
In a declaration likely to increase tensions on this subcontinent, the Indian police on Saturday accused Pakistan’s intelligence agency of being behind the July 11 train bombings that killed more than 180 people in Mumbai.
Imagens de Deli: Menino do lixo
Talvez um dia passe a ser um homem do lixo. Mas, por enquanto, não passa de um menino. Que recolhe lixo e restos nas animadas zonas comerciais e consumistas de Deli. De vez em quando alguém - como neste caso - dá-lhe um doce, uma peça de roupa ou uma moeda. Neste caso, um copo de leite. Na zona em questão - Priya, aqui perto - há uma ONG que, uma vez por semana, junta os meninos todos e lhes ensina a desenhar e a escrever. O resultado são pequenos desenhos e pinturas que eles assinam com o próprio nome e depois vendem a transeuntes, por algumas Rupias.
Taizé em Calcutá
Acabei de receber a visita de três portugueses e de um polaco. Vêm de Portugal e chegaram na noite passada a Deli, a caminho de Calcutá, onde se realiza um encontro mundial de Taizé entre 5 e 9 de Outubro. Deixaram cá alguma da bagagem, porque, afinal, não devem precisar de bikins e calções de banho na capital da Bengala Ocidental (mas sim, na visita posterior a Goa) . Um deles é o meu amigo Nuno Antão (que conheço dos Jantares dos Jovens de Goa, Damão e Diu em Lisboa), "goês de gema", mas que está pela primeira vez na Índia e vai, claro, visitar Goa também. Pelo que sei, haverá mais jovens católicos portugueses presentes em Calcutá. É um bom sinal, ainda por cima porque a maioria aproveita para visitar alguns outros locais da Índia e passear pelo país.
Seis polícias no meu apartamento (1)
Ontem à noite tive um encontro mais imediato com o estado indiano. Pouco antes da uma da manhã, irromperam seis polícias pela nosso aparamento dentro, aos berros, insultando, confiscando um passaporte, exigindo a ida de três colegas meus para a esquadra. Tudo devido a uma conversa prolongada e (um pouco) regada de uma dez pessoas no nosso terraço, com música em volume baixo de um portátil num dos quartos - e uma queixa de um vizinho que não tem nada que fazer na vida. Como o meu colega norte-americano Tyler, actvista de um partido estudantil de extrema-esquerda começou logo aos berros "Hamara haq hai" (é o nosso direito), os homens da autoridade estatal não gostaram muito e a coisa - que se poderia ter resolvido pacificamente logo aí - escalou para níveis impensáveis. Um relato mais pormernorizado, em breve, aqui, na Vida em Deli.
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