sexta-feira, 9 de junho de 2006

Série Redescoberta

Depois das Citações de Deli e das Imagens de Deli, inicio hoje uma nova série neste blog, intitulada de "Redescoberta".

Ao longo dos quase dois anos que já levo de jornalismo e de investigação na Índia, tenho-me deparado repetidamente com uma dificuldade muito singular. Trata-se de transcrever ou traduzir palavras, conceitos, títulos honríficos, mas, acima de tudo, nome de cidades, estados, regiões e países e demais realidades geográficas como rios, cordilheiras, planaltos etc para o português.

O processo é complicado. Tem uma dimensão ortográfica: como transcrever da oralidade indiana, ou do alfabeto devanagárico, as palavras para o português? Quais regras se devem seguir: Bangladeche ou Bangladexe? Certamente que Bangladesh, assim como frequentemente é utilizado, não. É esta a dimensão em que eu sou também mais fraco, e recorro frequentemente ao Ciberdúvidas da Língua Portuguesa ou a outros dicionários e pontuários. Os "K"s são aceites ou não? Basicamente: a geografia deve ou não ser refém da ortografia?

Mas há mais duas dimensões. Uma é histórica: muitos dos locais na Índia têm denominações portuguesas muito antigas, mas que foram caindo no desuso. Por exemplo, "Assão" e não "Assam" como se vê por aí. Caíram no desuso não por terem sido substituídas por novas denominações, mas simplesmente por puro desconhecimento e ignorância. Os jornalistas portugueses de hoje preferem retirar o "Assam" de forma incontestada da BBC Online, a concentrarem-se por um minuto e repescar na sua memória a designação original portuguesa para aquela região, que talvez até tenham lido num Fernão Mendes Pinto numa Secundária suburbana.

A dimensão mais complexa é a política. Muitas vezes, os nomes mudam, especialmente na Índia. De Bombay para Mumbai, de Calcutta para Kolkata e, em breve, de Bangalore para Bengaluru. Isto são acções políticas, muitas vezes pós-coloniais e revisionistas, às quais é preciso fazer face, cooptando a mudança, ou mantendo-se fiel à designação tradicional. Como é no português? Bombaim, Mumbai, Mumbay, Bombay?

Antes de mais, o que eu acho necessário é que haja um consenso. A lei do baldas que presentemente impera no jornalismo português referente a estas dimensões supra tem que acabar (o mesmo aplica-se a todas as outras regiões do mundo). Decidam que a partir de agora se passa a adoptar todas as designações inglesas, para impedir confusões e dabates e facilitar a integração global do jornalismo português. Acho que é uma argumentação muito pobre, mas pelo menos é aceitável porque clara e sustentada.

A questão aqui não é ser purista/conservador ou não. Isto não é uma questão de ortodoxia. É, simplesmente, uma questão de disciplina e de consenso e coooperação, logo de bom sentido. Ora bem: Bangladesh. Leiam "Bangladesh" tendo em conta as regras que aprenderam na escola. Não faz sentido, nem soa como deveria soar, por não? Aquele "sh" não serve de nada. É, pura e simplesmente, um anglicismo que não serve os seus propósitos. Porque, a valer, amanhã passo a escrever "Shina" ou "Chavesh" ou "Marrakesh".

Cá por mim, prefiro uma transcrição e adaptação de conceitos estrangeiros assente nas três dimensões: ser o mais fiel possível às regras de ortografia da língua portuguesa, procurar encontrar designações intrinsecamente portuguesas, mesmo que históricas e em desuso, e, finalmente, encontrar um ponto intermédio que respeite as re-designações políticas, mas não rompa com o passado, quando ele existe.

Por outro lado, este debate e estas dimensões todas são simplesmente fúteis e muito complexos. Como se diz, interessa é desbravar o caminho. O primeiro a fazê-lo escolhe o caminho e os outros não terão escolha a não ser seguir pelo mesmo. Ora, tendo em conta essa sabedoria popular, vou desbravar o caminho com esta série Redescoberta, explorando as complexidades de um jornalista e estudante na Índia, percorrendo debates à volta de transcrições de conceitos geográficos e outros da Índia, e apresentando a minha própria escolha (que vou aliás usando nos meus artigos jornalísticos e de investigação).

3 comentários:

  1. Pessoalmente, para meu uso básico de sânscrito, a transliteração inglesa parece-me mais adequada. A portuguesa tem algumas incongruências, tipo: Çiva??!! Até atraiçoa a sonoridade correcta de Shiva (xiado)...

    Além disso a inglesa é muito mais universal!

    E para certos conceitos até acho melhor nem traduzir nada. Há tantos conceitos que não têm correspodente minimamente encaixavel. Para quê forçar e entar pelo caminho dos equivocos constantes?

    Ainda assim, as linguagens em geral, e o sânscrito em particular parecem-me muito interessantes a nivel cultural, não obstantes as dificuldades que apresentam, e talvez mesmo por causa delas!

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  2. António, mais uma vez obrigado pela tua atenta leitura e sempre pertinentes comentários... mas deixa-me discordar. Então agora o inglês passa a ser universal? Eu sou o maior apologista da língua inglesa como uma essencialidade para sobrevivência internacional e mesmo nacional. Mas não vamos misturar alhos com bugalhos.

    E quanto a "Shiva" /"Çiva", acho que é e deve ser "Xiva". O que achas?

    Espero que possas contribuir mais vezes nesta minha série de "Redescoberta". Queria justamente que isto desse o mote para uma maior debate acerca da questão, porque é um tema que vai ser importante tratar, mais cedo ou mais tarde.

    Um abraço
    tino

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  3. É com prazer qu eleio o teu blog, que é das reflexões sobre a Índia mais lucidas e interessantes que já vi. E ainda tem o bonus de ser por um português, que é algo raro. E tão necessário!Força, continua e desde já obrigado.

    Quanto a esta questão das linguas, aliás, das transliterações do sânscrito...

    Realmente prefiro a feita para o Inglês. Não só porque é QUASE universal como porque realmente me parece a mais correcta.

    Claro que o uso que lhe dou e necessito é limitado. E até por isso o Inglês aqui leva vantagem.

    Conto-te isto: procurei em Lisboa , durante anos, um dicionário (ou ao menos glosário) do sânscrito para o português! Nada! Nem alfarrabistas nem livrarias... Uma vez vi um num alfarrabista, que estava muito velhinho e valia pela raridade e antiguidade! O dono quase nem me queria deixar tocar!E pelo pouco que vi...a qualidade não era muito boa!Entretanto em Inglês, alemão, francês e espanhol é fácil encontrar! Ou pelo menos encomendar!

    E isso já diz quase tudo.

    Tenho vários, mas na practica uso o Monier-Williams que me parece o melhor e mais completo.

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