sábado, 31 de dezembro de 2005
Keylong
Alguns dias são passados em passeios, enquanto dura a fugaz luz solar e os seus raios aquecedores. Subimos e descemos montes. Até deixarmos de sentir os pés de tanto frio. Por vezes perdemo-nos por entre a espessa neblina, só para nos reencontrarmos com a ajuda do ruído das manadas de vacas a mugirem ou dos rebanhos de cabras e ovelhas a saltitarem sobre a superfície fria e rochosa.
Outros dias não permites qualquer saída. As ruelas permanecem desertas e o nosso quarto aquece. As janelas embaciam-se, mas não notamos a diferença porque lá fora neva incessantemente. Duas ou três vezes ao dia subimos ao restaurante familiar de tons e gostos tibetanos – só para constatarmos que o telefone continua mudo e que o menu vai diminuindo à medida que escasseiam os ingredientes na cozinha. Ouvimos atenciosamente os rumores que nos são traduzidos em inglês rudimentar. A estrada continua cortada em vários sítios ao longo dos 400 quilómetros seguintes. Parece haver dezenas de estrangeiros isolados mil metros acima. Um grupo de ladaquis anuncia a partida a pé para o dia seguinte. Querem chegar a Leh em menos de duas semanas. Não acreditamos, porque há mulheres e crianças entre eles. Mas voltam a confirmar, adicionado um convite. Recusamos educadamente, inseguros se estamos a ser alvos de chacota local ou se devemos redefinir os nossos critérios mínimos de sobrevivência humana. Ao pequeno-almoço da manhã seguinte as suas camas no dormitório estão feitas e a sua bagagem desapareceu.
terça-feira, 13 de dezembro de 2005
Imagens de Deli: Fronteira indo-paquistanesa (Wagah)
Há um ano, ao fim da tarde dirigimo-nos da capital da religião sique (sikh), Amritsar, para a única passagem fronteiriça indo-paquistanesa aberta a trânsito rodoviário e ferroviário. Uma autêntica romaria acompanha-nos, centenas ou mesmo milhares de indianas, ávidos de verem um arrear de bandeira que certamente é dos mais teatralizados no mundo. Todos os dias, ao pôr do sol, os guardas de elites dos dois lados da fronteira ensaiam todo um ritual de passo de ganso acompanhado por ameaçadoras palavras de ordem e marchas militares. Deste lado o indiano, daquele o paquistanês. Mulheres numa bancada, homens noutra. Dos dois lados, bandeiras cortam o ar quente e insultos populares cruzam a linha que é tudo menos imaginada. Ela está ali, para todos verem, demarcada e repintada, reforçada, segura, reconfortante. Eles ali, nós aqui. Para nós os evitarmos a eles aqui e eles nos evitarem a nós ali.
segunda-feira, 12 de dezembro de 2005
Abu Salem
Abu Salem quer voltar a Portugal
A defesa do terrorista indiano extraditado por Portugal luta para o fazer regressar. Diz que está a ser torturado
HÁ um mês, a 11 de Novembro, aterrava em Bombaim um avião proveniente de Lisboa, trazendo Abu Qayoom Ansari, um suposto terrorista, mais conhecido por Abu Salem, e a sua companheira, Monica Bedi, antiga estrela de cinema na Índia. Os dois foram extraditados pela Justiça portuguesa, mas as implicações do complexo processo judicial estão longe de estarem terminadas para Lisboa. «Esperamos poder levar Salem de volta a Portugal», afirmou um dos seus advogados, Ashok Sarogi, ao EXPRESSO.
Sobre Salem recaem mais de 50 acusações, incluindo o envolvimento nos ataques bombistas de radicais islâmicos que em 1993 vitimaram mais de 250 pessoas em Bombaim, o suficiente para poder vir a ser mandado enforcar pela Justiça indiana. Mas disso deverão salvá-lo as condições de extradição impostas por Portugal: não ser condenado à morte nem a pena superior a 25 anos.
Os dois foram detidos pela Polícia Judiciária (PJ), em Setembro de 2002, em pleno Rossio. Tinham chegado a Lisboa em finais de 2001, munidos de seis passaportes indianos e paquistaneses, todos falsos. Casaram com cidadãos portugueses em troca de vários milhares de euros, assim conseguindo autorização de residência, que lhes permitiria obter a desejada nacionalidade portuguesa. Mas um mandado de captura internacional em nome do indiano de 42 anos, enviado pela Interpol à PJ, alterou-lhes os planos. Em Agosto de 2003, o Tribunal da Boa-Hora condenava Salem e Bedi a quatro anos e meio e dois anos de prisão, respectivamente.
Revogar a extradição.
A linha de defesa agora adoptada pela equipa de advogados indianos de Salem, no processo a decorrer em Bombaim, é a de que o acordo de extradição não está a ser honrado. «Ele disse-me que foi torturado pela Divisão Anti-Terrorista (ATS)», afirma Sarogi.
Salem está a ser ouvido por um tribunal criado por uma lei especial antiterrorista (TADA). O seu advogado lembra que, face ao acordo de extradição, «o CBI (polícia de investigação criminal) está a interrogá-lo ilegalmente sobre outros crimes para além dos oito pelos quais Portugal o extraditou». Sarogi pretende, assim, revogar a extradição, prometendo «avançar para os tribunais portugueses para provar que Salem não terá um julgamento justo na Índia». No entanto, o próprio juiz do processo, na semana passada, limitou o número de interrogatórios a Salem e garantiu-lhe livre acesso à Comissão de Direitos do Homem estadual (MHRC). Já Monica Bedi só deverá ser acusada de falsificação de documentos. A imprensa indiana cita-a mesmo, dizendo que «sente falta da prisão em que se encontrava em Portugal (Tires), semelhante a um hotel com várias estrelas».
Respeitar o acordo.
A extradição dos dois acusados obrigou o Governo indiano a investir numa longa batalha legal, que se estima ter custado cerca de 10 milhões de euros e se prolongou por sucessivos recursos no Tribunal Constitucional e no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Salem exigia asilo político, invocando estar em risco a sua vida nas prisões indianas, apinhadas de antigos inimigos seus de redes criminosas com que rivalizava nos anos 90. Praticante muçulmano, Salem dizia também temer ser alvo de discriminação religiosa, num país maioritariamente hindu, e punha em causa a celeridade e imparcialidade da Justiça indiana. Mas as garantias dadas pelas autoridades indianas convenceram Portugal e a UE.
Alguns juristas indianos têm vindo a público questionar a validade do acordo aprovado pelo executivo indiano e admitem a possibilidade de o sistema judicial seguir o seu próprio caminho, eventualmente condenando Salem à morte. Para Madhu Badhuri, a ex-embaixadora indiana em Portugal que tratou do caso até 2003, não há motivos para alarme. Contactada pelo EXPRESSO, em Nova Deli, acredita que o Governo indiano irá respeitar as condições impostas e salienta a «exemplar cooperação por parte do Governo português».
Constantino Xavier, correspondente em Nova Deli
domingo, 4 de dezembro de 2005
Expresso
S. Francisco Xavier
E lá foi para o ar a minha segunda peça radiofónica, já um tanto melhor que a primeira, espero. Pelo que me diz o meu amigo Henrique Mateus, passaram também na RFM. Agora tudo parece estar lançado para corresponder para outras temáticas, políticas, culturais, etc. Ficam os apontamentos que me serviram para a notícia de ontem, dia de festa de S. Francisco Xavier em Goa. Podem ouvir as duas notícias no site da RR:
D. José Policarpo em Cochim
Fátima: Dia do Apóstolo do Oriente
«Celebra-se hoje no pequeno estado de Goa o aniversário da morte de S. Francisco Xavier, apóstolo do Oriente. Na antiga capital do Estado da Índia Portuguesa, a Velha Cidade de Goa, reúnem-se hoje milhares de fiéis venerando as relíquias do santo, que se encontram guardadas na enorme Basílica do Bom Jesus.
Depois de falecer na China, na madrugada de 3 de Dezembro de 1552, o corpo de S. Francisco Xavier viria a ser transferido para Goa, a antiga capital do Padroado Português do Oriente. Desde então, há mais de quatro séculos, os cerca de 450 000 católicos goeses prestam grande devoção ao santo, que na língua local, o Concani, é conhecido por Gõycho Saib, o Rei e protector de Goa.
Nos tempos em que S. Francisco Xavier passou pela Índia dizia-se que "Quem viu Goa não precisa de ver Lisboa". A cidade é hoje considerada património mundial da humanidade e é aqui que se realizam durante todo o dia de hoje dezenas de serviços religiosos, sendo a missa principal celebrada pelo Arcebispo de Goa e Damão, Filipe Neri Ferrão.
A devoção pelo co-fundador da Companhia de Jesus não conhece barreiras religiosas nem distâncias geográficas. Chegaram nestes últimos dias a Goa milhares de fiéis de toda a Índia e do estrangeiro, incluindo muitos hindus e muçulmanos, todos procurando a protecção do santo que a par de Santa Teresinha é o Padroeiro das Missões.
A festa deste ano tem ainda especial importância porque prepara as comemorações do 5º Centenário do Nascimento de S. Francisco Xavier, a realizar oficialmente em 2006 em Espanha, em Portugal e em Goa.»
sexta-feira, 2 de dezembro de 2005
Vaipim, Cochim
«D. José Policarpo chegou hoje à cidade de Cochim, no sul da Índia, que esteve sob domínio português entre 1500 e 1663. A ocasião é histórica, comemorando-se o fim do processo de renovação e de restauro da Igreja de Nossa Senhora da Esperança e o quarto centenário da sua consagração, em 1505.
A cerimónia contará também com a presença do Embaixador João de Deus Ramos, em nome da Fundação Oriente que financiou a recuperação da igreja, com dois técnicos de restauro especialmente vindos de Portugal. O Bispo da Diocese de Cochim, John Tattumkal e ministros do governo estadual do Kerala representam o lado indiano. D. José celebrará a missa da parte da tarde e irá depois descerrar uma placa comemorativa, marcando a data.
A igreja está localizada numa pequena península a norte de Cochim, a chamada ilha de Vaipim, separando-a da cidade uma pequena baía, onde no século XVI ancoraram os navios de Pedro Álvares de Cabral, Vasco da Gama e Afonso de Albuquerque.
Cochim, rebaptizada de Ernakulam pelas autoridades, é hoje uma típica cidade indiana, com quase três milhões de habitantes. No seu seio subsiste o centro histórico, com forte influência colonial, portuguesa, holandesa e inglesa. Mas os dois séculos de domínio português deixaram o património mais importante. Para além das belas igrejas, de uma ou outra rua ou estabelecimento comercial com nome português, ou das muralhas portuguesas do seu forte, são os quase 200 000 católicos da Diocese de Cochim a mais forte herança deixada.
As cerca de 50 famílias lusodescendentes na ilha de Vaipim, nas redondezas da Igreja de Nossa Senhora da Esperança, são o testemunho mais vivo da presença histórica portuguesa. Falam num crioulo indo-português que já foi muito estudado por académicos de todo o mundo, mas está mais do que nunca em perigo de extinção.
Originalmente uma comunidade piscatória, os habitantes do bairro de Vaipim têm grande devoção a Nossa Senhora da Esperança, cuja estátua é ladeada no altar da igreja pelas figuras de S. Domingos, S. José, S. Francisco de Assis e Sto. Agostinho. Em estilo maneirista, o altar é do século XVI e estava inicialmente em Cochim. Com a conquista holandesa do forte e a expulsão dos portugueses, os crentes transferiram-no para a ilha de Vaipim, onde foi colocado na Igreja da Esperança, resistindo aos novos tempos protestantes, primeiro com holandeses, depois com ingleses.
Entre os habitantes de Vaipim predominam nomes portugueses como Luís, Joaquim, Domingos ou Rosário e em dias de festa entoam-se orações e cânticos marianos num português antigo mas quase perfeito. É na gastronomia que mais se faz sentir ainda a língua portuguesa, lembrando os mais velhos ao correspondente da Rádio Renascença, ainda em Março deste ano, as várias formas de preparar cozinhados. Temperado, cozido, secado, assado, enumeram, para depois saltarem logo para as sobremesas como o "figo doce" ou o "bôl coco".
E não deixam de apelar a mais apoios de Portugal para que possam manter este património vivo, sendo que os mais novos já pouco sabem do crioulo e desconhecem o passado português. A vinda de D. José é assim um grande motivo de festa para a Diocese local, mas em especial para a comunidade de Vaipim.»