sábado, 15 de setembro de 2007

Leituras de Deli: Deli (Khushwant Singh)

O meu amigo João há mais de um ano que me o recomendava. Armado em especialista deliense, com mais que fazer, fui adiando a leitura até ao dia em que finalmente, acotovelado no meio de dois punjabis num apertado avião da Turkish Airlines, o ataquei.

Talvez por eu nele reconhecer alguns elementos dos meus adorados Naipaul e Houellebecq. Talvez por o ter subestimado durante tanto tempo. Ou talvez porque narra uma vida em Deli que me é tão familiar. E finalmente, talvez por ter sido objecto de uma tradução exemplar (Luís Coimbra), de uma qualidade só raramente vista em Portugal (especialmente porque informada historicamente, culturalmente e geograficamente).

Uma narrativa solta e sincera que foi capaz de me iludir, por completo, no que concerne a sua situação temporal. Não me refiro aos saltos cronológicos seculares, da Idade Média, dos tugluques e dos mógois ao presente.

É mesmo a situação contemporânea que é contenciosa: por vezes parece que estamos ainda na Deli pacata pré-liberalização económica, capital das elites e em que tudo - da política e dos negócios ao amor - se fazia lentamente, com a calma que caracteriza qualquer civilização milenar. Uma capital em que o poder residia nas mãos de poucos, em que uma elite opulenta se encontrava no hoje decadente Gymnkhana e por lá, à volta de uma cup of tea, decidia o destino de milhões. Mas há também rasgos de uma Deli já pós-moderna, em que os Ambassadors são substituídos por Mercedes, em que as avenidas largas se encontram polvilhadas de soldados de metralhadora em punho e em que se fecham negócios multimilionários e se discute a ratificação de tratados estratégicos nucleares.

Durante a leitura inclinava-me para a primeira opção, confirmada agora por uma ida ao Wikipédia: a obra foi lançada em 1990, portanto antes do frenesim das reformas económicas e das transformações profundas de que a capital foi alvo.

E explica-se assim, mais uma vez, porque é que me deixei entusiasmar tanto por este Deli. Dá-me a conhecer uma Deli que só raramente se me apresenta, que só com muito esforço consigo imaginar à minha volta, mas que, aqui e acolá, continua a resistir aos ventos da mudança. Uma Deli omnipresente, mesmo que em rápido desaparecimento. É uma Deli que habita Defence Colony, que sobrevive em Chandni Chowk, nos Ambassadors e Marutis cobertos de ferrugem na minha rua, no gigantesco tomo em que o funcionário anota o número do meu recibo, ou nas ladies que ocupam as primeiras filas de um concerto de música clássica no India International Centre e exclamam repetidamente marvellous! .

A Cavalo de Ferro está assim de parabéns. Apresenta aos leitores portugueses mais do que um simples romance neo-orientalista, na linha do que têm oferecido os muitos escritores indianos chic no Ocidente. Apresenta uma magnífica porta de entrada para o subcontinente, em que o enquadramento histórico se lê como um livro de aventuras e em que o passado recente dos anos oitenta nos serve de referência e Norte na descoberta de uma Deli do presente que soluça por orientação.

1 comentário:

  1. Partilho o seu entusiasmo pelo romance "Deli" e pela obra do Khushwant Singh em geral (pena ter apoiado a Emergency da Indira, mas nobody is perfect). Com os seus 90 anos continua a ser um dos mais lúcidos comentadores do presente indiano.

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