terça-feira, 24 de outubro de 2006

Fila indiana

Festa de anos, ontem, de uma amiga, numa sala algures no campus. Uma dezena e meia de amigos, a maioria dos quais íntimos, um pouco de música e bebida. Alguns dançam, outros conversam. Ligo a televisão e vejo um pouco de O Senhor dos Anéis.

Um primo de um amigo qualquer aproxima-se e lança, sarcasticamente, sorrindo: "Então, estás a querer dar cabo da festa?". Aliado aos insistentes, coercivos e mesmo fisicamente violentos pedidos para os não-dançantes se juntarem aos dançantes, é um típico sintoma do comunitarismo indiano: a individualidade, a liberdade de escolha e a singularidade pessoal são simplesmente inexistentes.

Não é novidade para mim. Nos serões festivos nos palacetes indo-portugueses de Goa não era muito diferente. Menor ainda, envergonhado pela minha ignorância dançante tão típica de um diaspórico desenraízado, era alvo dos piores arrastões para o meio da pista dançante, seja pela avó ou por uma prima qualquer. "Mas eu não sei dançar!", exclamava, desconhecendo ainda estratégias retóricas mais sofisticadas a que recorro hoje ("não me apetece"). Não interessava. O que interessava era forçar a ovelha preta para dentro do rebanho.

Resumo da discussão que depois se prolongou, noite dentro, cá por casa: por um lado, é um aspecto positivo. Em vez de excluir e discriminar o "outro", os esforços são dirigidos á sua inclusão e assimilação. É também uma medida de compaixão: estender a mão ao que tem dificuldades em se integrar na corrente maioritária.

Mas, por outro lado, o espírito de inclusão e de compaixão transformam-se rapidamente em manobras comunitaristas visando a homogenização e rendição forçada do outro. É a recusa da diferença e da liberdade individual de escolha. Nela, a maioria vê uma dissidência e uma afronta à sua base de legitimação: quem está a ver televisão está conscientemente a provocar a erosão da legitimidade da comunidade homogénea dos dançantes.

É um sentimento intrínseco à maioria dos indianos. Muitos argumentam o contrário e celebram a pluralidade e a liberdade individual, bem como cultura de argumentação, que permeiam a sociedade indiana. Talvez haja elementos que o justifiquem. Mas nada de absolutos, por favor. Para quem anda por cá, nem que por uns poucos dias, observa imediatamente que esta é, acima de tudo, uma sociedade organizada à volta de princípios axiomáticos de tons extremamente dogmáticos, em que as verdades são para ser seguidas e executadas em... fila indiana.

5 comentários:

  1. TinoX:
    Nao tem nada que ver com este post, mas: ¿é verdade que o cinema na india é um pouco como o teatro medieval? com pessoas a falar, a gritar, a exaltar-se pelas cenas do filme, etc.
    Carlos
    PS: Existe um novo dEus, pronto para conquistar o universo. trata-se de um pássaro de duas cabeças que une o tradicionalmente divino e diabólico numa divindad TOTAL. Pois tudo é dEus, tudo é Abraxas!

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  2. Mergulhemos, por um breve momento, no episódio concreto, em vez de nos atirarmos picarescamente à generalização romba a apressada.

    1. Sabemos que o jovem constantino (JC) foi a uma "festa de anos", lugar universal, por definição, de convívio social e animação colectiva.

    2. Mais, pressupomos que o JC foi devidamente convidado para o efeito, tendo tomado a sua decisão em liberdade; i.e.,não terá sido coagido, violentado, amarrado, algemado, pontapeado, sovado ou arrastado, entre outras improbidades, com a intenção de se condicionar a sua decisão.

    3.Ora, se a ambição última do JC repousava no empaturrar enfadonho de televisão, teremos que convir uma de duas verdades: ou o jovem (arremedo de) liberal desconhece o significado cultural, não falando já do linguístico, do conceito de "festa de anos" - e está perdoado; ou, o que seria pior, JC atribui ao exercício da liberdade a complexidade do acto de mascar pastilha elástica, descarnando-o de qualquer contextualização e concretização social.

    A ser assim, meu caro JC, o liberalismo que tem apregoado deve ter certamente pais franceses, tão abstracto e insensato se revela. Se queria afirmar a sua liberdade e individualidade, tivesse recusado o convite previamente, pois já deveria saber melhor.
    O liberalismo não é nenhum borrego dourado, nem nenhuma tábua de leis fixas para vituperar civilizações milenares apenas porque não foi respeitado o seu "momento televisivo" - é uma tradição anglo-saxónica de respeito, autonomia, tolerância, moderação e compreensão social. De resto, tudo aquilo que não encontrei neste post.

    PS: estaria bem melhor a zurzir os bombistas fanáticos de caxemira e seus compinchas paquistaneses.

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  3. xii nehru

    axo q nem percebeste o que ele quis dizer...

    essa foi ao lado :0

    ja fui a india e sei bem do que este post fala..

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  4. Carlos:

    sim, chama-lhe "teatro medieval", se quiseres. Dependendo do filme e da sala de cinema, batem-se palmas, ri-se às gargalhadas, chora-se, grita-se, comenta-se e anedotiza-se em alta voz. Há especialistas que eu já reconheco pela voz, que com os seus comentários têm a ilustre capacidade de porem o anfiteatro inteiro às gargalhadas.

    Resumindo: vive-se o drama realmente, numa orgia de emoções e reacções, tão diferente e distante da asséptica e silenciosa audiência cinéfila ocidental, anichada nas poltronas e profundamente, mesmo que inconscientemente, incomodada pela presença de outros à sua volta.

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  5. NEHRU:

    1. Diz que eu tenho apregoado o liberalismo. Onde e quando?

    2. Desde quando que uma festa de anos é definível como "lugar universal de convívio social e animação colectiva"?

    3. Terá conhecimento de coerção psicológica, para além da ladaínha de coerções físicas que aponta? Por exemplo, na Índia, recusar ir a uma festa de anos de uma amiga com a seguinte justificação apregoada por si: "Desculpa, amiga, mas não vou porque quero escapar à eventualidade de ser forçado a dançar e criticado por ver televisão enquanto que outros conversam e dançam na sua suposta própria forma de expressão de liberdade".

    4. NEHRU é convidado a uma festa de anos no coração tribal de Bornéu, na Indonésia. Numa tradição milenar, a tribo que NEHRU investiga no seu trabalho de campo de Mestrado, liberta um menino para a floresta e vai depois caçá-lo, decapitando-o de seguida numa cerimónia de grande alegria. NEHRU irá então contextualizar e concretizar socialmente?

    5. A liberdade e a individualidade não se conquistam em clausura e separados um do outro. A individualidade é um produto da liberdade e vice-versa. NEHRU, portanto, teria preferido
    a) dançar contra a sua vontade, porque não gosta de dançar, mas os amigos o forçaram a tal
    b) ou ficar em casa, anichado em frente à CNN e a Fashion TV, recusando ir socializar, debater e interagir (e ver um pouco de TV, quando lhe apetecesse) com os amigos de uma cultura diferente

    6. "respeito, autonomia, tolerância, moderação e compreensão social": justamente, tudo aquilo ausente daquela festa de anos em relação ao meu desejo de não dançar e ver um pouco de televisão.

    7. Os "bombistas fanáticos de caxemira" que tanto o preocupam são:
    a) seus primos
    b) sua criação

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