sexta-feira, 26 de agosto de 2005

Backpackers (1)

A Índia é certamente um dos destinos mais cobiçados dos backpackers. Aqui cruzam-se europeus e americanos, obviamente, mas também japoneses e coreanos, e, especialmente, israelitas.

A minha primeira viagem pela Índia foi em 2002. Desde então tenho repetido a dose de mochila às costas regularmente. E há um fenómeno que eu observo repetidamente e com que eu me delicio profundamente.

É o da cooperação e conflito entre os backpackers. É fascinante observar o seu comportamento, as suas aspirações, os seus hábitos etc. porque para além de representarem uma pequena comunidade do que eu gosto de chamar a "fauna global", espelham também a mais profunda essência ocidental (considero os backpackers, incluindo os japoneses e coreanos, como sendo essencialmente ocidentais).

Não será por acaso. É quando estamos fora do nosso habitat que mais nos distinguimos. O ocidental deixa-se observar e caracterizar mais correctamente fora do Ocidente. Por exemplo, como backpacker na Índia.

A própria essência do backpacking reflecte a sua natureza ocidental. A fascinação pelo exótico, pelo desconhecido, no caso da Índia, pelo oriental. A necessidade de fuga de um contexto que é só se admite envergonhadamente e com um tímido sorriso que mais parece um pedido de desculpa. "I'm from Manchester" respondia o meu amigo inglês sempre que um turco lhe perguntava "Where are you from?", fugindo deliberadamente à resposta mais natural, mas mais pesada e complexa, que seria um mero "England".

Gosto de recorrer ao caso alemão, porque é um exemplo radical que se aplica de forma moderada a toda a civilização ocidental. É o sentimento de remorso, o peso na consciência, o medo e a vergonha. Em todas as conferências internacionais de jovens que participei e em todas as situações em que testemunhei a apresentação pública de um jovem alemão no estrangeiro, conto pelos dedos os casos em que estes se apresentaram como "German". Escapam por várias vias.

A maioria rende-se ao simpático "European", mas havia uma rapariga "from Baviera", havendo também casos de "Turkish but born in Germany". Os miúdos mais engraçados refugiam-se na comédia: "Ich bin ein Berliner" dizem, quando é a vez deles de se apresentarem no início, quando se forma um círculo e todos se apresentam numa sessão de "ice-breaking". Todos se riem, e, numa grotesca omissão e aceitação do complexo de identidade, passa-se à apresentação seguinte.

O mais curioso, quando estas apresentações decorrem fora do espaço ocidental (como no caso do meu amigo inglês) é a reacção dos autóctones. Normalmente menos letrados, talvez um condutor de autocarro ou um vendedor de rua, sorriem confusamente. Na sua percepção e avaliação tudo aponta para que o meu amigo respondesse "I am from England", ou por já terem visto o passaporte, ou pela vestimenta e fala dele etc., e preparavam-se já para lançar o cliché do "Oh, ver nice country. Beckham!". Assim, ficam estupefactos e incapacitados de enfrentar o complexo identitário do meu amigo inglês. Muitos limitam-se a sorrir. Outros, mais habituados, continuam a conversar. Na Índia testemunho este fenómeno recorrentemente, e nunca vi um indiano inquirir mais sobre essa misteriosa "Manchester" ou sobre "Where in Europe, exactly?". Respeita-se a identidade do outro e embora acredite que os indianos devem ser das pessoas com menos noção de individualidade e privacidade no mundo, respeitam a resposta.

Este é o primeiro fenómeno, o da fuga para a frente. Os backpackers são jovens que normalmente têm educação superior e horizontes mais largos, interessados por um país distante e misterioso como a Índia. Mas, no fundo, não são nada mais do que derrotados, envergonhados e fugitivos. É uma afirmação generalizada, claro, mas não tenho dúvidas que são caracterizações que se aplicam à maioria dos backpackers que tenho encontrado pela Índia.

sexta-feira, 19 de agosto de 2005

Sadhu versus Generais

Há já duas horas - ainda o sol está a nascer - que subimos pelas montanhas. São centenas de curvas e contra-curvas. Impera o silêncio, só se ouve o ranger da carroça, um ocasional ressonar ou uma exclamação de dor quando o autocarro passa uma lomba ou uma vala e os pequenos ladaquis das últimas filas batem com as suas cabeçitas no tecto. Alguns olham para o alto das montanhas cobertas de nuvens negras e comentam algo num tom preocupado. Mais tarde viria a partilhar da sua sabedoria montanhesa.

Do nada, começam a aparecer camiões militares na direcção contrária. A sua camuflagem verde dá-lhes um toque ensonado a estas horas da manhã. O autocarro enfia-se pelo lado exterior da estrada, beijando a ravina, e passa os primeiros camiões. Mas, à segunda curva, a dimensão do problema agrava-se. Avistam-se dezenas de camiões em fila, todos à espera de passar ao nosso lado.

Os passageiros começam a acordar. Há uma dupla reacção. Os ladaquis, com os seus olhitos em bico ainda ensonados, não parecem muito impressionados. Olham um pouco à volta, em silêncio, e adormecem outra vez. Já nas filas da frente, maioritariamente ocupadas por indianos do planalto indostânico (basicamente: indianos), reina alguma algazarra e todos têm uma opinião, mas ninguém se mexe. O condutor berra com os seus congéneres militares. O seu colega, em Lisboa seria o "pica", é um rapaz novo e espreita timidamente por detrás do motorista.

Há vários generais nos camiões. Pesadamente cobertos por insígnias e condecorações, não se mexem nem se ralam com o que se passa. Assim, não há possibilidade de recuar nem de avançar. À direita os camiões, à esquerda a ravina. Os veículos estão imobilizados há 15 minutos, não há solução à vista.

Como estamos sentados perto da porta da frente, vemo-lo escapar-se. O sadhu, no meio do silêncio traseiro e da agitação fronteira, tinha-se levantado do seu lugar, do meio dos dois rapazes adormecidos. Silenciosamente desce do autocarro – não sabemos bem para onde porque o único espaço para ele pôr os pés seria o fundo da ravina. Talvez para fazer chichi, pensamos.

Dois minutos depois, do nada, a fila de camiões militares movimenta-se e o autocarro pode avançar. Já em andamento, a porta abre-se à nossa frente e salta para dentro o sadhu. Ninguém no autocarro se apercebeu da sua obra. Mas, por um breve segundo, enquanto se movimenta para o seu lugar, partilha connosco o seu segredo. O seu olhar, embebido de sabedoria e magia, e um pouco divertido também, transmite-nos uma mensagem: "Pus isto a andar". E continuamos a subir.

segunda-feira, 8 de agosto de 2005

Partida chuvosa: o motivo

São cinco da manhã e estamos numa paragem de autocarro indiana numa cidadezinha indiana num estadozinho indiano. À volta já ontem tínhamos vislumbrado alguns brancos cumes de neve dos Himalaias. Demorámos 15 horas a chegar a Deli e não tencionamos ficar muito mais tempo por aqui – um dos dezenas de "hill resorts" indianos em que abunda a ruidosa e degenerada classe média-alta indiana, os casais em lua-de-mel que ainda só trocaram meia dúzia de frases mas já passeiam de mão dada pelo The Mall onde há poucas décadas ainda soavam as botas britânicas.

Está frio e a chuva cai em dilúvio. O pequeno edifício da estação rodoviária está repleto, pessoas dormindo por todo o lado. À nossa frente o "Himachal Road Transport Coroporation semi-deluxe bus" que segundo informação oral e horário pintado sobre uma placa de madeira apodrecida nos deve transportar durante dois dias para Leh, capital do Ladaque budista e parte do estado de Jamu e Caxemira, atravessando os Greater Himalaias, planícies desérticas e passes gélidos acima dos 5000 metros. Verde e branco, dorme ainda. No seu topo já está colocado um barril de gasolina extra.

Com uma hora de atraso, um ensonado condutor abre as portas. Os lugares são conquistados, pela força e pela casta pelos locais; pelo verbo, pelo bilhete e pelo passaporte por nós. Seat number 5 and 6, bem à frente como queríamos, para evitar os saltos acrobáticos e um consequente rabo dorido e assado nas últimas filas. Os bancos não são de madeira, mas de alumínio revestido de uma fina colcha sintética e sem repouso para a cabeça. A qualquer arranque mais violento ou a qualquer batida por trás, as nucas estão expostas a uma barra de alumínio que reluz com ameaça mortífera.

Na sua maioria, são mongolóides no autocarro. Os olhos em bico, parecem um pouco ameaçadores, mas são pequeninos e sorriem muito. São Ladaquis e budistas e anseiam por um regresso rápido a casa depois de a profissão ou a burocracia os terem forçado a vir para baixo, para sul, para as planícies indostânicas.

Mas, no meio do autocarro, quase ao nosso lado, reina uma pequena agitação. Um vagabundo acompanhado de dois meninos à volta dos dez anos de idade procura garantir o seu lugar. Consegue-o com bastante aparato. Os três vêm carregados de sacos, sacas e demais trapos e recipientes para comida e bebida. O homem, alto e barbudo, impõe um pouco respeito – embora não o seja, identifico-o como um sadhu, um homem-santo hindu que viaja as intermináveis terras indianas em meditação, canto e peregrinação.

O sadhu trata as crianças muito mal. Talvez sejam os seus filhos, mas não interessa. Traz consigo um longo pau de madeira com que vai dando carolos dolorosos nas crianças por qualquer coisa de errado que façam. Às vezes também voa um tabefe. Antes ainda de eu iniciar o processo de decisão ocidental se devo intervir ou não, já um pequenino ladaqui aproxima-se rapidamente das últimas filas e habilmente com um gesto só retira o pau das mãos santas. Diz-lhe algo que não percebo. Mas a mensagem é clara. Aqui reinamos nós. Aqui não se bate em crianças. O sadhu, apanhado de surpresa e reduzido a um estado minoritário, não esboça sequer reacção, salvo uma cara indignada e até um pouco infantilmente triste.

Está lançado o motivo para a viagem. Todas as viagens na Índia têm um motivo, uma matriz sobre a qual se constrói uma comunidade, seja de conflito ou de cooperação. O sadhu, pela sua natureza, assumiu essa tarefa. Todos se sentam e a carcaça metálica arranca para os Himalaias.