domingo, 11 de junho de 2006

Swagatam

Ainda nem sabia eu ligar o rádio da cozinha, porque não chegava ao botão respectivo, e já os sons indianos da Rádio Orbital me acompanhavam todos os Domingos de manhã. E continua. O programa "Swagatam" é emitido em 101.9 FM, todos os Domingos de manhã, entre as 10:00 e às 14:00, procurando "divulgar a música e cultura indiana", segundo a voz do amável locutor, que parece não ter mudado em vinte anos.

"Swagatam" (que significa "bem-vindo" em hindi) é uma ilha de paz na rádio portuguesa. Especialmente por emitir num espaço como o da Rádio Orbital, conhecida pelo seu carácter suburbano e techno reles. Assim, o programa aparece tão rapidamente como desaparece. Num minuto ainda se ouvem as batidas e os zumbidos esquizofrénicos do Crazy Frog, para, subitamente, nos envolverem as equilibradas e suaves melodias e vozes indostânicas.

Pessoalmente, tenho mais um contraste gravado na memória. Os Domingos de manhã eram dias em que a família acordava em conjunto, sem a correria dos dias da semana. Éramos cinco. Enquanto a minha mãe fazia umas apas à moda goesa que nós pouco depois deglutíamos com manteiga e açúcar, o meu pai fazia esforços para nos retirar da cama e nos vestirmos para a missa. Todo esse processo, incluindo os quinze minutos de viagem de carro para a Basílica de Mafra, pelas desertas estradas bucólicas e saloias, fazia-se ao som de "Swagatam", como que as melodias orientais procurando dar-nos algum norte histórico, alguma razão existencial.

O programa é bilingue e cativa portanto gerações e públicos diferentes, dos mais velhos indianos que vivem encalusurados nas suas "Little Indias" periféricas sem falar mais do que dez palavras em português, aos mais novos indianos, que talvez ainda vão a conduzir, de volta de uma noitada em Lisboa nas discotecas da moda, acompanhados pela loura namorada portuguesa.

Mas a audiência é internacional também, porque se pode ouvir o programa em directo no site da Orbital. "Temos ouvintes por todo o mundo, nos Estados Unidos, na Inglaterra, em Angola, em Moçambique, em França etc. E recebemos agora um e-mail da Austrália do x, que nos diz que é nascido na Beira, mas que quer dedicar a música y a uma amiga em Lisboa". É assim, tão fácil assim, que pela voz de um locutor num estúdio qualquer num subúrbio qualquer, se galgam fronteiras e espaços e ideias.

Mas o que mais interessa é que no "Swagatam" se fundem não só sons, mas ideias e culturas também, de forma positiva. Bastante ao contrário da RDP África, de que sou um ouvinte regular e de que gosto muito, mas que, pese a sua natureza pública, tende a cair muitas vezes na ratoeira da auto-marginalização e da sectarização cultural. "Angola, chutá bola, vamos prá vitória!".

O melhor do "Swagatam" são os anúncios, lidos numa voz melodiosa pelo próprio locutor ou por uma assistente feminina. Um estilo radiofónico verdadeiramente arcaico, é certo, mas bastante atractivo, pessoal e eventualmente com bastante sucesso também entre a audiência-alvo. "Venha ao estabelecimento x, em Santo António dos Cavaleiros. Grande gama de produtos indianos, masala, gelados indianos, especiarias diversas. Encontra tudo à sua disposição. E agora às Segundas-feiras, venha encontrar legumes e hortaliças fresquíssimas vindas directamente da Índia só para si." E segue-se o endereço e o telefone.

Há ainda os engraçados concursos radiofónicos (patrocinadas, claro, pela Dan Cake e o seu magnata dono indiano), e pontuais chamadas dos ouvintes. Lembro-me que os olhos do meu pai brilhavam sempre que, talvez uma vez ao mês, eles punham uma música goesa, ou talvez marata, e sempre que algum goês ligava para lá, e sempre que o locutor falava umas palavras em concani... ou marata.

“As boas acções não carecem justificação, mas as más não passarão incólumes por Deus, que nos prestará conta por elas por muito muito tempo”, avisa o locutor, no seu "pensamento da semana". Repete numa língua vernacular indiana. Segue-se outra secção, das felicitações. Não antes de o locutor passar um desmentido.

No programa anterior alguém "fez uso da nossa boa vontade passando uma mensagem de noivado falsa, sob identidade falsa", afirma, e lembra que "nos quase 20 anos, milhares de dedicatórias com felicitações para noivados, aniversários, etc. sempre grátis, num serviço à comunidade no seu todo universal, nunca isto aconteceu".

"Não queremos pôr fim a este serviço. Façam uso positivo dele. Não o usem para fins maléficos, atentando ao bom nome de famílias honestas", apela e explica que "passámos este desmentido a pedido do pai da jovem que manifestou indignação perante esta falsa e ignóbil notícia do noivado”.

E voltam os sons indianos, antigos e modernos, do Norte e do Sul, preenchendo e ocupando o meu quarto. O meu pai chama-me. Desligo a rádio. Vou para a cozinha. Já cheira a apas.

6 comentários:

  1. Muito bonito texto, Tino. O locutor de que falas é o Champaklal Devchande, e a voz feminina, a assistente que se ouvia, durante anos, era a sua filha, Babita. O programa está no ar há 20 anos mesmo, pelos vistos. Ainda hoje, de manhã, no domingo, quando estou na casa dos meus pais, ouço-os a escutar deliciados o programa, que funciona como uma ponte entre as diversas comunidades de origem indostânica e o público restante. Champaklal, português e hindu, tem sido incansável com esse programa, e, pelo que sei, é uma batalha diária arranjar patrocinadores ou publicidade, para manter o programa no ar.

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  2. Milan!

    que bom ter-te de volta! Pouco antes de aparecer este teu comentário, vi uma luz a piscar ali pela Europa Central, Viena? Por onde andas com a tua objectiva?

    Deparei-me (googlando) com esse nome Champaklal Devchande, mas não tinha a certeza. Conheces-lo pessoalmente? Se sim, podes-me indicar um e-mail ou outro contacto? Gostava de falar com ele um dia, parabeniza-lo pelo trabalho, e discutir formas de colaboração com o meu Supergoa.com etc... e talvez até pôr lá um anúncio no programa e ajudá-lo.

    Estás bem informado... nunca percebi: tb és de origem indiana?

    Um abraço,
    tino

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  3. Olá Tino!

    Sim, "indiano" dos quatro costados (whatever that is), sem nunca "lá" ter posto os pés :) Ainda bem que partilhas comigo a admiração pelo Chanpaklal. Os meus pais conhecem-no pessoalmente já desde os tempos em que viviam em Moçambique, há algumas décadas. Ele tem um escritório nas Galerias Almirante, na Av. Almirante Reis (teve lá qualquer tipo de actividade comercial em tempos). Qualquer dos lojistas te saberá indicar o nº da porta lá dentro. É um homem por quem sinto uma grande admiração. Há décadas que mantém aquele programa e tenta dinamizar várias actividades comunitárias, e fá-lo de forma perfeitamente altruísta, pouco mais recebendo em troca do que algum agradecimento de quem o ouve. Vai lá falar com ele, é uma pessoa muito acessível.

    P.S. Tenho blogado pouco, por falta de tempo, mas ando por estas bandas mesmo. Abraço

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  4. Olá sou um macaense em lisboa, que tem que trabalhar todos os domingos das 15h às 24h. Devo dizer que tenho achado revigorante ouvir as suas músicas que me levam a outros estados, outros pensamentos, outra paz.
    No fundo gostava apenas de lhe agradecer. E muito.
    Nestes tempos de crise, com poucos empregos e mal pagos, e fundamentalmente enquanto a vida passa-nos a correr à frente dos olhos, é sempre bom encontrar algo que nos faça sonhar com realidades diferentes e mundos melhores.
    A música é um grande condutor pois sinto-me em viagem cada vez que ligo o rádio nas suas horas. É a viagem mais económica que conheci até os dias de hoje... haha
    Um forte abraço, nunca mude! André C.

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  5. Tiago Santos2:38 da tarde

    É dos meus programas preferidos da rádio. Além disso como já estive na India (a melhor viagem da minha vida), este programa faz-me lembrar essa maravilhosa e inesquecível viagem, que sempre que escuto música indiana ou vou a um restaurante, sonho no dia em que voltarei a pisar solo indiano e a viver a sua cultura...

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