quinta-feira, 5 de outubro de 2006

Sayida

Já vos tinha aqui falado da Sayida, a nossa empregada de limpeza desde que eu cheguei a Deli, há dois anos. Muçulmana, do paupérrimo estado de Bihar. Talvez se lembrem dos seus dois filhos, Gudu e Ruby, a quem eu, duas vezes por semana, ensinava a ler e a escrever. Entretanto, o Gudu cresceu e abandonou a escola. É aprendiz de mecânico. A Ruby, fruto de dificuldades financeiras, teve que ficar na aldeia natal desde o verão passado. Na cidade custa mais manter uma boca faminta. Depois há o mais velho, o Mohammed Kash. Embora seja parcialmente invisual, é o que mais sucesso teve, dada a ajuda e apoios sociais públicas e privadas. Andou numa escola especial para invisuais, é o único da família que sabe ler e escrever inglês e hindi fluentemente, dá aulas privadas de Tae-kwon Do e participa em competições nacionais de natação para deficientes físicos e parece que já ganhou uma medalha ou outra.

Este post era para escrever sobre a nossa nova empregada, a Leja. Mas a Índia é assim. Obriga-nos a parar e a penetrar detalhes. E, portanto, parece que me fico pela história da Sayida. Pequenina e magrinha, farta-se de trabalhar. É empregada de limpeza em três casas ao mesmo tempo. Não limpa lá muito bem, e está sempre a resmungar. Mas sabe também sorrir e ser amável como poucas pessoas, sempre prestável e sempre tratando-me a mim, e a todos os meus outros companheiros de apartamento durante dois últimos anos, como um filho.

O marido é de alguma forma, misteriosa, incapacitado e só raramente trabalha. Talvez, parece-me, seja alcoólico. Está sempre, sorridente, sentado no canto do quarto que alberga a família. Eles vivem na aldeia de Munirka (Munirka Village ou Munirka Gaon) que contrasta com a "nossa" Munirka, os Munirka DDA Flats, uma zona residencial que para níveis indianos é semi-luxuosa. Numa das claustrofóbicas ruelas em que até um GPS de melhor qualidade de pouco serviria, vira-se umas tantas vezes à direita e à esquerda, para baixo e para cima, até se chegar ao prédio da Sayida, do marido, do Mohammed Kash, do Gudu e da Ruby. Entra-se para um páteo interior para o qual dão diversos quartos pequenos, menores que a maioria das casas-de-banho dos novos apartamentos em Lisboa. É num desses quartos que eles vivem.

Vem isto tudo ao acaso porque a Sayida deixou de aparecer. Como nós lhe pagamos quase o dobro do salário normal e ela se tornou praticamente parte da "família", começamos a estranhar depois de alguns dias. Finalmente, ligou-me o filho mais novo, mas o meu hindi só deu para compreender que ela estava doente. Uns dias depois aventurámo-nos para a aldeia urbana. Pela janela, do páteo, vi-a sorridente. Claro que, logo que ela se apercebeu da nossa chegada, a expressão facial mudou, exprimindo dor e exaustão. De facto, percebemos logo que nos sentámos e nos deram os documentos médicos, Sayida está com tuberculose. Ficámos à conversa por uma meia hora e, responsabilidade de hóspede, fomos obrigados a beber chá e comer uns bicoitos.

As coisas estão mal para a Sayida. Está agora em tratamento, mas parece que a situação não é de gravidade. Mas o tratamento deverá impossibilitá-la laboralmente por vários meses. Vamos então à ultima peça deste trágico, mas tão normal, puzzle de um quotidiano familiar indiano.

Ainda não me referi à filha mais velha (escapa-me o nome), de dezoito anos de idade. Há dois anos que eles tentam arranjar-lhe um casamento. Por duas vezes a Sayida conseguiu um noivo na aldeia natal, juntou um dote considerável (com generosa participção nossa) e partiu por vários meses para a terra, para preparar e realizar o casamento. Da primeira vez, nas vésperas do dia D, o noivo e a família desapareceram com o dote. Da segunda vez, foi tudo abortado quando a família do (segundo) noivo pediu, também nas vésperas, uma televisão e uma mota. A filha mais velha ficou agora na aldeia, a tomar conta da Ruby, sob auspícios dos familiares.

É este um pequeno pedaço da história da vida da Sayida. A história da Leja, que agora substitui a Sayida, fica então para um outro dia.

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