quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

Um despedimento

Vamos despedir a nossa empregada. Ao fim de dois anos descobrimos que é mais rápido, efectivo e barato fazermos nós próprios todos os trabalhos domésticos. Pelo menos até voltar a nossa querida empregada de sempre, a Sayida, que por esta altura prepara o casamento da sua filha, provavelmente afogada em dívidas por causa do dote matrimonial para a família do noivo, no longínquo e miserável estado de Bihar.

terça-feira, 30 de janeiro de 2007

Citações de Deli: Sonia Gandhi

Decorreu até hoje a conferência internacional sobre "Peace, Non-violence and Empowerment, Gandhian Philosophy in the 21st Century", patrocinada pelo Governo indiano. Diversos oradores reputados, vários nobelistas, e até o nosso Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação, João Gomes Cravinho. Na primeira página de hoje, do Hindu, uma citação de Sonia Gandhi, a nº1 do Partido do Congresso e, ao que se diz, a nº2 neste país. Uma citação que teima em não me deixar em paz.

"The world's nuclear weapon states have more than adequate atomic arsenal to destroy humanity many times over. And it is not just nuclear weapons. We also confront the spectre of chemical and biological weapons. Yes, India has nuclear weapons. This became a strategic compulsion for us, born out of the failure to persuade the world to abolish nuclear weapons"

Imagens de Deli: Coral

A minha prima Coral, de Goa, numa loja de roupa no mercado de Sarojini Nagar.

Think again: India

A ler em conjunto com a minha próxima Passagem para a Índia, já nas bancas, na revista Atlântico de Fevereiro. Chama-se "Reality Check" e proponho-me a reavaliar a real importância da emergência indiana e as suas qualidades democráticas, desfazendo assim alguns mitos.

Think Again: India
Americans have a love affair with India, seduced by a colorful culture, one of the world’s great cuisines, and the sense that these two great democracies are a lot alike. In reality, however, the two countries have very little in common, and a lot that could pull them apart.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2007

Pontes indianas

Estas pontes indianas são de fazer inveja aos portugueses. Sexta-feira foi o Dia da República, com as tradicionais marchas militares na longa avenida Rajpath que liga o palácio presidencial ao India Gate. Hoje, Terça-feira, é a vez de um feriado religioso islâmico, o Muharram. Teoricamente, são cinco dias de férias. De ponte.

Mas a diferença é que, ao contrário das portuguesas, bem pavimentadas de fio a pavio, as pontes indianas se encontram sempre profundamente esburacadas. Trabalha-se no Sábado de manhã. Talvez ao Domingo. Obviamente à Segunda e, outra vez, talvez na Terça.

Aldrabando: Contrato de aluguer

Na semana passada fomos a um notário assinar o contrato de aluguer para a nossa nova casa. No meio do processo, reparámos que nos estavam a mandar assinar dois contratos. Um no valor de 9 000 Rupias e o outro no valor de 6 000 Rupias, em vez de um único no valor acordado da renda mensal, nomeadamente 15 000 Rupias. Inquiridos, o agente imobiliário e o dono da casa murmuraram que era para "facilitar questões fiscais".

Buzinas

É normal os visitantes estrangeiros a Nova Deli referirem-se à sua extrema poluição sonora como um caos de buzinadelas. Foi assim, aliás, que se referiu à cidade a jornalista Leonete Botelho, do Público, numa caixinha de curiosidade paralela à cobertura da visita oficial de Cavaco Silva à capital indiana. Para quem, pela primeira vez, aterra na Índia, a primeira reacção, legítima, é mesmo essa: os condutores indianos buzinam por tudo e por nada. Uma cacofonia sem rei, nem roque. Incompreensibilidade. Logo caos.

Estive a pensar, a ouvir e a observar. Especialmente nas viagens mais longas de riquexó pela cidade em que tenho pouco com que me entreter. Na realidade, não há caos nenhum. Há uma certa ordem na acção indiana do buzinar. E, por sinal, essa ordem é oposta à nossa.

Nós, em Portugal e, regra geral, na Europa e no Ocidente, buzinamos a posteriori. Em Lisboa, por exemplo, recorre-se maioritariamente à buzina como reacção, protesto, exclamação (porventura por alegria desportiva ou política). Isto é, a buzina é uma resposta.

Aqui, na Índia, regra geral, buzina-se a priori. A emissão sonora serve de sinalização, de aviso e de intenção de manobra. Tal e qual um radar GPS, em que podemos observar outros objectos móveis sinalizados por pontos luminosos, o radar indiano é sonoro, indicando por via da buzina a localização precisa dos outros objectos. Aqui buzina-se, quase sempre, para avisar os outros. É extremamente raro alguém utilizar a buzina à nossa maneira, isto é, para reagir à manobra de algum outro veículo ou transeunte ou animal. Basta um ligeiro desvio. E a vida continua, sem stresse.

Mais. O GPS sonoro indiano tem uma sofisticação adicional. O tipo de emissão sonora reflecte o tipo de objecto. Camiões de longa distância, autocarros, carrinhas, jeeps, limousines, táxis, carros normais, auto-rquexós, motas de gama alta, motas de gama média, motas de gama baixa, bicicletas, ciclo-riquexós, carroças, transeuntes e até animais: todos têm buzinas (ou outra fonte sonora) emitindo sons peculiares e originais, permitindo permear o sistema de uma ordem que, imperceptível aos nossos olhos e ouvidos, nos parece assumir contornos caóticos.

Não é, portanto, exagero quando alguns estrangeiros dizem, a brincar, que os indianos parecem conduzir de olhos fechados. É mesmo verdade. Basta a buzina.

domingo, 28 de janeiro de 2007

Indian soft power

Um texto de opinião interessante de um dos mais conhecidos diplomatas indianos, o estiloso Shashi Tharoor, no Times of India de hoje. Faz parte da campanha "India Poised" que o jornal lançou este mês, tendo por objectivo inculcar nos indianos um novo sentimento de patriotismo e orgulho nacional.

Observers speak of India's geo-strategic advantages, its economic dynamism and record growth, political stability, proven military capabilities, its nuclear, space and missile programmes, the entrepreneurial energy of our people and the country's growing pool of young and skilled manpower as assuring India's future. But the greatest asset of all may be something less tangibly measurable — our soft power.

Redescobrindo: Lucknow, avadh, nawab

Ora aqui estão termos locais para os quais não tenho a mínima solução. Como transcrevê-los para o português? Lucknow é a capital do maior estado da Índia e por conseguinte merece uma transcrição. Já a eventual transcrição dos termos "avadh" (a dinastia que dela reinou por vários séculos) e "nawab" (o soberano, também utilizado noutros contextos regionais) merece particular atenção por parte dos historiadores. Aceitam-se sugestões na caixa de comentários.

Imagens de Deli: Chota Imambara (Lucknow)

A mais pequena das duas célebres mesquitas da cidade de Lucknow, capital do estado do Utar Pradexe. Construída em 1840, faz parte do monumental conjunto arquitectónico da dinastia avadh que aqui reinou até finais do século XIX.

sábado, 27 de janeiro de 2007

Recomendações

Obrigado, Miguel Albano, pela recomendação desta Vida em Deli no teu blogue. Idem para o Luiz de Carvalho, no seu Instante Fatal. Recomendações retribuídas.

Educação à indiana (Atlântico)

"Educação à indiana" é o título da minha mais recente coluna Passagem para a Índia na revista Atlântico de Janeiro, ainda nas bancas.

"...em vez de “rasca”, os estudantes indianos são a “nata”. Não esbanjam fundos comunitários em semestres de intercâmbio Erasmus, para se embebedarem nas noitadas e se orgulharem de não terem posto os pés nas aulas. Aqui, quem não dá o máximo arrisca-se a ser substituído. Mais de 200 000 jovens candidatam-se anualmente ao Indian Institute of Managment de Bangalore. Apenas 250 são aceites. É o reino da competitividade pura, dura e, acima de tudo, justa. (...) Figuras como Zarkaria, Sen, Nooyi e Mittal não são fruto do acaso ou representantes de uma típica elite terceiro-mundista assimilada. Reflectem a emergência indiana por via da educação e simbolizam o sucesso de um sistema flexível, democrático e inovador que, apesar de todas as suas limitações, está a provocar profundos rombos no casco do velho galeão que é a educação na Europa."

sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

Aldrabando: Balança manual (papel)

De vez em quando recebo a visita dos paper-wallahs, indivíduos que percorrem os bairros de bicicleta, visitando cada casa em busca de papel e cartolina para reciclagem. Compram ao quilo, no valor de cerca de 5 Rupias (10 cêntimos). Mas vêm munidos de umas balanças manuais e de uma experiência aguda: com uns gestos de pulso conseguem sempre fazer com que oitocentos e tal gramas de papel de jornal pesem mil gramas. Como chegam de manhã, cedíssimo, pelas sete, é obvio que não estou em condições de ripostar, ainda por cima por um punhado de Rupias.

Imagens de Deli: Bangalore

quinta-feira, 25 de janeiro de 2007

Nova casa

Já mudei de casa, já escrevo do novo apartamento. Aconteceu tudo com uma semana de atraso. Razão: já depois de termos assinado o contrato, soubemos que, por alguma manha que nos escapou (provavelmente a de nos termos fiado na palavra "honrada" que nos deram), o dono da casa e o agente imobiliário conseguiram ocultar o facto de haver um problema de canalização e de nela não haver um pingo de água. Uma semana depois, conseguimos finalmente apropriar-nos daquilo que é legalmente nosso. Por enquanto, depois de umas reparações provisórias, só com água na cozinha e numa das duas casas de banho ("indian style").

Duas bolsas para mil milhões (Expresso)

No 1ºCaderno do Expresso de 13 de Janeiro, nº 1785

Duas bolsas para mil milhões

“Aprendemos português porque queremos trabalho, é só isso”, diz Prem Kumar, um jovem indiano, fluente na língua de Camões, que trabalha numa multinacional em Bangalore. “A maioria dos estudantes não quer saber de Portugal, nem da sua cultura”, lembra, adiantando que é, acima de tudo, o mercado brasileiro que os atrai.

Prem é um caso típico entre os milhares de jovens indianos que vêem na aprendizagem da língua portuguesa uma oportunidade para fazer parte do milagre económico do seu país. Aos jovens que dominam minimamente a língua é oferecido um salário mensal de, no mínimo, vinte mil rupias. São cerca de 360 euros mensais para contabilidade lusófona ou a atender chamadas do Brasil e de Portugal também. “As empresas até preferem que falemos com sotaque brasileiro”, confidencia.

A autêntica caça aos falantes de português leva a que empresas de Bangalore e Chenai coloquem anúncios de uma página inteira nos jornais de Goa, a antiga colónia portuguesa, apelando a candidatos. O salário mensal para um operador de língua portuguesa, para assistência informática, chega a ultrapassar os mil euros. Mas há também uma grande procura para o sector de turismo e das traduções, reflexo da intensificação das relações económicas entre a Índia e os países lusófonos.

Mas os obstáculos são imensos e o Instituto Camões (IC) é alvo de fortes críticas por parte de vários estudantes. É o caso de Prem, que já usufruiu uma bolsa de um ano, do IC, mas só pôde ir a Lisboa porque a acumulou com uma outra, da Fundação Oriente. “Em Portugal devem pensar que somos ricos”, queixa-se, lembrando que a bolsa exclui os custos de viagem e se limita a 450 euros mensais. Prem, originário do Bihar, um dos estados mais pobres da Índia, critica ainda o facto de haver só “uma única bolsa anual para centenas de interessados”. Na realidade, com a outra bolsa oferecida em Goa, são duas para toda a Índia.

Outros exemplos reflectem o abandono a que tem sido votada a política cultural portuguesa na Índia. Na cidade capital do segundo maior país do mundo há só um leitor, na Universidade de Deli, enquanto que na Universidade Jawaharlal Nehru, onde Prem estudou, o ensino da língua está nas mãos de dois professores de espanhol e de uma leitora paga pelo Governo do Brasil. No próprio Centro Cultural da Embaixada, a falta de fundos leva a que os alunos fotocopiem os manuais. Também ali o ensino da língua tem estado nas mãos de professores indianos, moçambicanos e brasileiros.

Constantino Xavier, correspondente em Nova Deli

Entrevista (Antena 1)

No programa Visão Global, de Ricardo Alexandre, na Antena 1, uma breve entrevista comigo sobre a visita presidencial entre 10 e 17 de Janeiro passado. Começa pouco depois do minuto 4. Seguido do Embaixador José Cutileiro que simpaticamente se refere a mim como "compatriota em Nova Deli". Versão áudio aqui (para Windows Media Player) ou aqui (Real Audio).

sábado, 20 de janeiro de 2007

Portugal beckons (Hindustan Times)

Há uns meses, um diplomata português queixava-se para comigo que era "impossível" fazer com que a imprensa indiana dê atenção a uma visita oficial portuguesa à Índia. Assumi o desafio e cá esta o resultado, publicado no passado dia dez, num dos dois maiores diários de língua inglesa na Índia, o Hindustan Times (ligação directa).

Portugal beckons
Constantino Xavier, January 10, 2007

As Portuguese President Cavaco Silva begins his official visit to India today, he will observe a country quite different from the one that greeted Vasco da Gama back in 1498. Unlike then, when mighty Portuguese cannons ruled the seas and set the rules, it is India that now occupies a central position in the international system.

The ironies of history are truly remarkable. Half a millennium ago, Portuguese vessels roamed the Malabar coast, searching for ports of entry to the rich Indian and Eastern spice markets. Today, Portugal comes to India promoting itself as a port of entry to the West and as a strategic platform for Indian interests in Europe, Africa and Latin America.

What advantages does Portugal offer to India in this ‘Asian century’? Above all, its strategic situation at the western-most tip of Europe, facing the Atlantic Ocean, with a dynamic economy, from a booming tourist industry to world-class services, textiles and automobile industries, all ready to be a part of India’s economic miracle. It thus serves as a privileged gateway for India to explore the emerging Portuguese-speaking markets of Brazil, Angola and Mozambique. Portuguese is the native language of more than 200 million people, being the official language of eight countries in four continents.

As a member of the European Union, Portugal is also of great political importance to India. The rotating presidency of the EU will, from June onwards, be in Portuguese hands and Prime Minister Jose Socrates will represent the European side at the next EU-India summit in New Delhi in November. Thirty-two years after the re-establishment of diplomatic ties between the countries in December 1974, Socrates will be the first-ever Portuguese Prime Minister to pay a bilateral visit to India.

Another important bridge is the 70,000 members-strong Indian community in Portugal — the third largest in Europe — its members hailing mostly from Goa and Gujarat. The Hindu community of Portugal is a well-organised and influential minority in the country. It is, therefore, no surprise to see many People of Indian Origin in the Portuguese presidential delegation: the President of the Islamic Community of Lisbon and of Efisa bank, Abdol Vakil; the Communist Party-elected MP Abílio Fernandes; the former MP and President of Lisbon’s Oriental Studies Institute Narana Coissoro; and business magnate and owner of confectionaries Dan Cake, Kantilal Jamnadas, among others.

Cavaco Silva has accorded great importance to this State visit. Three ministers, two secretaries of State and 70 of Portugal’s best business managers are part of his delegation. And next week, he will be a guest of honour at the Leadership Summit in Bangalore. All this transmits a clear message: it is now India’s time to discover Portugal and its opportunities for Indian interests.

Constantino Xavier is a Portuguese research scholar at the Jawaharlal Nehru University, New Delhi.

Imagens de Deli: Arrumador

Aqui, no terceiro mundo, os arrumadores são civilizados. Velhinhos - como este - ou miúdos (na maioria dos casos) têm um pequeno bloco e uma caneta. À chegada de cada veículo, anotam a matrícula respectiva no bloco, dão-nos o papelinho e pagam-se 5 Rupias por motociclo ou 10 por viatura ligeira. Na sua grande maiora, são autorizados pelo município de Nova Deli e, em mais de dois anos, nunca vi qualquer problema ou qualquer veículo riscado. Uma lição para as cidades portuguesas? Ou um serviço a que só um país rico em mão-de-obra, como o é a Índia, se pode dar ao luxo?

sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

Mais uma casa

Três anos e meio e já vou na segunda mudança, para a terceira casa. Finalmente, conseguimos um apartamento aqui perto, na mesma área residencial. A renda mensal é de 15 000 Rupias, aproximadamente 280 Euros, dividida por três (que a bolsa não dá para mais). Desenvolvimento interessante: há três anos, quando cheguei, a renda estava em 10 ou 12 000. É a explosão do mercado imobiliário indiano (deliense).

Mais um semestre

Começou esta semana mais um semestre. É o meu sexto na Índia. Três cadeiras: 1. Research Methodology (Varun Sahni), 2. Realism and World Politics (Rajesh Rajagopalan), 3. Culture, Norms and Ideas in World Politics (Siddharth Mallavarapu).

Portugal visto da Índia (Jornal de Negócios)

Um artigo meu virado mais para o mundo empresarial português, publicado no Jornal de Negócios de 10 de Janeiro.

Portugal visto da Índia
Constantino Xavier*

Finalmente, com um atraso de vários anos, também Portugal acordou para a necessidade de redescobrir a Índia, quinhentos e sete anos depois de Vasco da Gama. Prova-o a visita oficial que Cavaco Silva presta, a partir desta Quinta-feira, a uma economia que, daqui a menos de trinta anos, deverá ser a terceira maior do mundo.

Mas, tendo em conta a experiência dos raros empresários e investidores lusos que por aqui se têm aventurado, são inúmeros os obstáculos que ainda se nos colocam, no terreno.

Em termos populacionais, a Índia é cem vezes maior do que Portugal (só Bombaim tem quase vinte milhões de habitantes) e as disparidades entre o arcaico mundo rural e as cosmopolitas bolsas urbanas são gritantes. As práticas de negócio são condicionadas pelo sistema de casta hindu, pela estrutura política federal (28 estados e 604 distritos) e pela grande diversidade religiosa (maior minoria muçulmana do mundo) e linguística (23 línguas oficiais). Há que enfrentar ainda a titânica burocracia e a endémica corrupção (os índices são recordistas a nível internacional), bem como o crónico subdesenvolvimento infra-estrutural (cortes de energia são frequentes, até na capital).

Se todas estas dificuldades podem, de uma maneira ou outra, ser ultrapassadas com o apoio de parceiros locais, um aspecto permanece, no entanto, central ao sucesso português na Índia. É o da nossa imagem naquele país. Por um lado, Portugal goza de um imenso (e, por enquanto, subaproveitado) capital de simpatia, especialmente em áreas de influência histórica portuguesa, como o são Goa, Damão e Diu, onde Portugal representa uma poderosa imagem de marca e um símbolo de prestígio para o consumidor.

Contudo, essa mais-valia sentimental limita-se a pequenos nichos territoriais, insignificantes ao nível nacional. Nas metrópoles indianas – os motores do consumo e crescimento económico – a imagem de Portugal é, pura e simplesmente, inexistente. Não é raro persistir a imagem de um Portugal subdesenvolvido, isolado e conservador. Para os indianos o azeite pode ser espanhol, a tecnologia belga, a engenharia espanhola, os aviões brasileiros e o vinho chileno e australiano. Português, talvez só o Figo e o Ronaldo, embora nem o futebol nos sirva de porta de entrada para um país em que reina o críquete.

Para todos os efeitos, Portugal situa-se na periferia do imaginário internacional da classe média indiana e é esse o principal obstáculo ao sucesso dos nossos empresários que, por sua vez, também sofrem os efeitos nefastos da pobre imagem que prevalece da Índia em Portugal, dissuadindo-os de explorar as grandes oportunidades que nos oferece a “nova Índia”, no “século da Ásia”.

É neste contexto sombrio que a visita presidencial a Nova Deli, Goa, Bombaim e Bangalore se afigura como uma excelente oportunidade para que se refresquem imagens mútuas e se identifiquem novos nichos e oportunidades, a Oriente e a Ocidente.

*Investigador, Universidade Jawaharlal Nehru, Nova Deli

quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

Imagens de Nova Deli: Prakash Karat

Prakash Karat (de camisa branca) é o secretário-geral do Partido Comunista Indiano - Marxista (principal partido comunista, com assento parlamentar) , discursando para uma plateia de estudantes na residência Tapti, na minha universidade, há cerca de dois meses. Fala bem, de forma articulada e arejada: "não somos contra todo e qualquer investimento estrangeiro ou toda e qualquer privatização, mas queremos que a abertura e as reformas económicas sejam feitas respeitando os interesses de toda a população, e não só de uma minoria".

Basicamente, foi este o seu ponto principal, naquela tórrida noite, naquele refeitório com mesas rachando sob o peso da ideologia estudantil, com o ar abafado, húmido e mal-cheiroso. Um ponto típico entre os reformistas comunistas indianos, orfãos do socialismo soviético e invejosos do socialismo chinês. Esta é, no entanto, uma universidade que vive e testemunha um debate contínuo. Um universidae da qual os líderes de partidos, ministros e activistas não fogem. Onde, mais do que uma honra, falar é um dever para com o pluralismo de pensamento.

Esta é uma das razões pelas quais eu decidi estudar na JNU. Não há nada que substitua isto em Portugal.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2007

Nós e a Índia, de Calecut a Nova Deli (DN)

Texto de opinião publicado no Nacional do Diário de Notícias, de 10 de Janeiro de 2007 (ver versão Online). Nessa manhã, recebi logo vários e-mails com reacções diversas, de elogios a críticas acérrimas e acusações. Ainda bem.

Nós e a Índia, de Calecut a Nova Deli

Constantino Xavier, constantino.xavier@gmail.com
Investigador na Universidade Jawaharlal Nehru de Nova Deli


Calecut, 1502. Na sua segunda viagem à Índia, Vasco da Gama manda as suas naus bombardearem a cidade, durante dois dias e duas noites. Eram então os canhões portugueses a ditarem as regras do jogo naquela parte do mundo. Nova Deli, 2007. Ao aterrar, esta semana, no Aeroporto Internacional Indira Gandhi, a comitiva presidencial portuguesa, liderada por Cavaco Silva, já não terá canhões à sua disposição. Na competitiva hierarquia da diplomacia e da comunicação social indiana, a visita portuguesa irá, muito provavelmente, ficar abaixo da de um gestor de uma multinacional norte-americana, alemã ou japonesa.

É natural que algo tenha mudado desde Gama e Calecut. É agora uma Índia confiante e segura de si que emerge no sistema internacional. Desde 2004, mais de cinquenta chefes de Estado e líderes de Governo fizeram-lhe visita oficial, oferecendo atractivos acordos de cooperação política, económica, cultural e militar. Bangalore e Bollywood, Tata e Mittal, Agni e Bhagwati, Nooyi e Naipaul são alguns dos nomes que passaram a ser fundamentais no léxico dos que querem compreender e explorar as transformações vividas na Índia, neste chamado "século da Ásia".

Portugal parte com atraso. Enquanto que, em termos de trocas comerciais e investimentos na Índia, o nosso país tem vindo a ocupar os últimos lugares entre os 25 parceiros europeus, o ICEP prima pela ausência naquela que, daqui a menos de trinta anos, deverá ser a terceira maior economia do mundo. No plano político, nunca um primeiro-ministro português visitou a Índia e os ministros que o fizeram contam-se pelos dedos.

Quanto à cultura, a falta de financiamento leva a que os postos para leitores do Instituto Camões se mantenham, muitas vezes, vagos, e isto perante milhares de jovens indianos que vêem a nossa língua como uma mais-valia profissional para explorarem os mercados lusófonos. O desinteresse com que temos olhado para um sexto da humanidade também se reflecte no facto de não haver um único correspondente profissional português em toda a Índia - só na capital os espanhóis da EFE têm sete.

É neste contexto sombrio que 2007 se apresenta como uma oportunidade. Ao fazer-se acompanhar por três ministros e dois secretários de Estado, Cavaco Silva dá um sinal claro de que esta visita pretende voltar a colocar a Índia no nosso horizonte estratégico. A sua ida a Bangalore (o chamado Silicon Valley indiano) para falar na abertura do prestigiado fórum económico "Leadership Summit", bem como a presença de dezenas de gestores e empresários lusos na delegação oficial, promete refrescar as desactualizadas imagens mútuas entre os dois países. Uma outra oportunidade para o reavivar do histórico eixo luso-indiano será a visita bilateral que José Sócrates irá fazer a Nova Deli, em Novembro, no contexto da presidência portuguesa da União Europeia e da respectiva cimeira com a Índia.

Para que as oportunidades de 2007 sejam devidamente exploradas é, no entanto, urgente assumirmos o custo da negligência a que temos votado a Índia e sabermos descontar as glórias da história que nos continuam a iludir. Este humilde processo de desilusão passa pelo reconhecimento de que Portugal é hoje recebido como um visitante de segunda categoria pela mesma Índia que, há cinco séculos, conquistou à canhonada.

No avião presidencial

Fotografia do Luiz de Carvalho.
Cavaco Silva canta os parabéns a uma jornalista, enquanto que o avião começa a descida para o aeroporto de Dabolim, em Goa (eu estava sentado logo ao lado esquerdo). Como a Luísa Meireles, minha ex-editora do Internacional e agora no Nacional do Expresso, precisava de mim~em Goa, fui presenteado com uma amável boleia presidencial, no Airbus da SATA. Lá no fundo, com os jornalistas, de Deli a Goa, durante três horas. Já que eu não vou a Portugal, e se avolumam as saudades, nada como um avião português vir à Índia e eu matar saudades e cantar os "Parabéns". Ao lado do Presidente.

O Luiz e o Instante Fatal

Como já escrevi no blogue dele Instante Fatal, com uma excelente cobertura não só fotográfica da viagem presidencial à Índia, foi um prazer conhecer e trabalhar com o Luiz de Carvalho em Deli e em Goa. Ele é o coordenador de fotografia do Expresso e veio com a Luísa Meireles na comitiva do Cavaco Silva.

Depois de algumas experiências menos boas com fotógrafos portugueses, foi reconfortante ver o Luiz trabalhar. Às vezes, parecia um tigre enjaulado pelo programa oficial asfixiante que não lhe dava a liberdade que a Índia exige de todos os que a querem fotografar. Tenho a certeza que ele vai voltar um dia.

Foto: Luiz de Carvalho, de pinta na testa e colar de flores, e Leica M8 à chegada ao Hotel Taj Palace em Nova Deli.

O momento indiano (Expresso)

Expresso, Economia, Edição 1874, 6 de Janeiro 07

O momento indiano
Constantino Xavier, correspondente em Nova Deli

Avul Pakir Jainulabdeen Abdul Kalam. O perfil biográfico do Presidente da Índia, que na próxima semana servirá de cicerone a Cavaco Silva, representa bem o momento de transformação que se vive no segundo país mais populoso do mundo. Os perfis de Kalam e da nova Índia conjugam-se e confundem-se em três planos essenciais.

Primeiro, a primazia da ciência e da tecnologia como alicerces fundamentais para o desenvolvimento. Kalam é formado em Engenharia Aeronáutica e foi um dos grandes impulsionadores da investigação espacial indiana, além de ser o pai da estratégia «Visão Tecnologia 2020».

Depois, a crença no poder militar de produção interna, simbolizada pela liderança de Kalam no programa de mísseis balísticos e pelo seu papel determinante na realização dos testes nucleares, em 1998.

Finalmente, a aposta na educação, representada no seu currículo académico com mais de trinta doutoramentos «honoris causa» e pelo facto de o chefe de Estado dedicar especial atenção à escolarização obrigatória e à educação superior de excelência.

É justamente nestes três planos que a Índia tem coleccionado sucessivas vitórias a nível mundial e atraído a atenção de uma comunidade internacional que, ainda recentemente, a descartava como mais um país sofrendo de subdesenvolvimento crónico. É, por isso, com algum espírito vingativo que se vive o actual momento de euforia na Índia. De tal maneira que até os moderados elogios que o seu primeiro-ministro dedicou à colonização inglesa, num discurso na Universidade de Oxford, foram alvo de radical contestação.

“Este é seguramente o nosso tempo”, declarava a recente capa de um diário económico indiano, proclamando categoricamente que o “futuro do mundo faz-se aqui”. São doses inéditas de confiança, que levam o próprio Presidente Kalam a reivindicar, já em 2020, o estatuto de superpotência para o seu país.

Perante todo este optimismo oriental, emergem duas questões essenciais. Até que ponto é justificado interpretar este momento indiano como uma força embrionária de um mundo pós-ocidental, com centros de decisão na Ásia, e que tanto alarme está a fazer soar na Europa e nos Estados Unidos?

E no nosso caso, em particular, até que ponto é que Portugal poderá continuar a dar-se ao luxo de ignorar o impacto deste momento indiano, em vez de explorar as inúmeras oportunidades que ele nos apresenta? Seria recomendável se, no contexto da visita presidencial à Índia, reflectíssemos um pouco sobre estas questões.

sábado, 6 de janeiro de 2007

O meu Presidente vem à Índia

Sobre a minha agradável surpresa, em relação ao conteúdo e programa da visita oficial de Cavaco Silva aqui à Índia, escrevi aqui, no espaço da Atlântico.

Imagens de Deli: Desenhos com hena

Fascina qualquer turista ocidental feminina: nas ruas de Deli é comum verem-se mulheres e crianças aplicando desenhos em hena nas mãos de mulheres. Depois de secar, retira-se a substância cremosa lavando as mãos, as respectivas marcas (linhas e diversas outras minunciosas figuras geométicas) ficando visíveis por vários dias. Normalmente são vermelhas, castanhas ou alaranjadas, dependendo da qualidade utilizada.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2007

Redescobrindo: Bangladexe e Daca

No seguimento da redescoberta anterior, torna-se óbvio que, para mim, o antigo Paquistão Oriental, independente desde 1971, é o Bangladexe. Não Bangladeche (mas aceitável, em termos ortográficos), e muito menos Bangladesh, como se vê, de forma repetida, na nossa imprensa. É por aqui que iniciaremos a nossa redescoberta ortográfica de vários estados indianos... Antes disso, convém lembrar que a sua capital não é Dakha ou Dhaka e Daka, nem Dáca ou Dacca, muito menos ainda, Dakar (já vi!). É sim, pura e simplesmente, Daca, tal como vaca e caca, de que, aliás, há muito naquela cidade.

O paradigma dos contrastes

O paradigma é repetitivo e, vocês aí, triste audiência portuguesa, preparem-se para mais uma dose quando a troupe mediática lusa, integrando a comitiva presidencial, chegar a Nova Deli para a semana: a Índia é, pelo menos para a maioria dos jornalistas superficiais que temos em Portugal, o país dos contrastes. É o paradigma catch-all que, simplista, permite um óculo agradável de leitura deste segundo maior país do mundo.

Isto é, sucumbindo ao relativismo, o contraste passa a ser verdade absoluta. Um plano de uns meninos miseráveis mendigando num cruzamento e depois um plano de um restaurante de luxo qualquer, com Bentleys à porta. Está feita a reportagem para o jornal das oito: "Índia, o país dos contrastes" e mais umas balelas. Os mais políticos exploram depois a tese de que o país poderá sucumbir, usar as metáforas das duas velocidades e das duas Índias e a ideia de que a Índia dos ricos está a enriquecer à custa da dos pobres.

A Índia como país dos contrastes é um paradigma agradável. Chamo-lhe de paradigma poque, mesmo que alguém mais corajoso adopte outra aproximação ou a temática seja muito específica (um encontro empresarial luso-indiano, por exemplo), o tal paradigma dos contrastes está lá, sempre presente e sempre merecedor de uma referência, mesmo que indirecta. Ele, digamos assim, ensombra quase toda a cobertura jornalística portuguesa que se faz da Índia (há excepções, raras). O paradigma reconforta o espectador, no seu sofá em Alcabideche. Cá está algo que nos escapa, um país que é tudo e nada ao mesmo tempo. Um país que é rico e pobre, bonito e feio, pacífico e violento ao mesmo tempo. O passo seguinte é óbvio: fascíneo. Ai que exótico, Zé, levas-me lá? É tão diferente.

Para quem, como eu, anda por cá há algum tempo, e para quem lê esta vida em Deli há algum, as coisas são obviamente mais complicadas. São complicadas porque, simplesmente, não são diferentes. A Índia é, algumas particularidades óbvias à parte, um país como qualquer outro, com os problemas do costume que acompanham tanto o Zé no sofá como a sua mulher e também o Bill Gates. São problemas humanos, portanto universais.

A ideia até é gira: implica que nós no Ocidente vivemos um mundo cinzento, monótono, homogéneo e repetitivo. Implica que na Índia tudo é incerto, inseguro, diferente, colorido, espontâneo e circunstancial. Ora, para quem quer ter pão para comer e telhado para se abrigar das intempéries, que eu saiba, a primeira opção é sempre a mais desejável. Acham que a mulher que carrega tijolos nos ombros tem tempo para reparar no seu colorido sari que contrasta com o escuro betão da casa que a sua família constrói, a cinco Euros por dia, para um agente imobiliário qualquer que, muito provavelmente, ainda violará a sua filha de sete anos?

Não interessa. Os contrastes. Esses sim, celebrados, embora eles nos ceguem. Mas não interessa. Ver em profundidade custa. Tempo, paciência, abertura, complexidades, profundidade. Tudo coisas a que poucos jornalistas portugueses se dedicam, especialmente quando integrados em comitivas presidenciais e quando empaturrados de caviar.

Imagens de Deli: Junaid

Continuando a série relativa às pessoas que compõem esta minha vida em Deli, aqui está o Junaid. Um verdadeiro caxemire, de sangue puro. Formado em Ciência Política pela prestigiada universidade islâmica Aligarh University, a sul de Deli, completou comigo o M.A. nos dois últimos anos e volta agora a ser o meu colega no M.Phil., ainda em Relações Internacionais. Antes, trabalhou na redacção do prestigiado diário The Hindu e é, actualmente, próximo da deusa das pequenas coisas de que vos falava há uns dias. Embora seja ferenho ideólogo de inclinação marxista, subalterna e terceiro-mundista, orientações que nem sempre me guiam a mim também, é um dos meus grandes amigos, o suficientemente interessado, alegre e inteligente para, no fundo, saber que as coisas do mundo são muito complicadas. Nesta foto, no entanto, as coisas são mais simples: a sua mão contém um pequeno foguete - não uma granada.

Supergoa.com

Para quem, nestes dias que se avizinham, quiser uma cobertura in situ da visita presidencial de Cavaco Silva à Índia, para além deste espaço, convém ir dando uma vista de olhos pelo meu Supergoa.com que está em fase de renovação.

quarta-feira, 3 de janeiro de 2007

Redescobrindo: Calcutá e Bengala Ocidental

Não é Kolkata, nem Calcutta ou Colcata: mas sim, Calcutá, cidade-berço de Chandra Bose e de Rabindranath Tagore e cidade adoptiva da Madre Teresa. Já agora, a antiga capital da Índia Britânica é hoje capital do estado de Bengala Ocidental (nada de West Bengal, Bengal ou Bengal Oeste, mas aceita-se a versão curta Bengala - sendo que a outra Bengala, a Oriental, é o Bangladexe).

Imagens de Deli: Jogo de feira

Tirei esta foto numa recente feira gastronómica na JNU. O jogo é simples e, provavelmente, familiar a quem ainda percorre as feiras rurais portuguesas (?). À distância de dois ou três metros, atira-se uma argola e ganha-se o objecto (sumo, chocolate etc.) que ela rodear. É fácil, é barato, não dá milhões, mas é divertido.

terça-feira, 2 de janeiro de 2007

Passagem de ano

A experiência da minha primeira passagem de ano em Nova Deli está aqui.

Aldrabando: Habitação

Um testemunho pessoal: Em Agosto de 2004 alugámos uma casa e a dona prometeu-nos (à boa maneira indiana, mencionando algumas tantas divindades) que podíamos ficar por dois anos. Um ano depois anuncia a "má notícia": vai vender o apartamento e temos dois meses para encontrar nova habitação.

Procuramos e encontramos. Fazemos o novo dono jurar, agora pelas oitocentas e tal divinidades do panteão hindu, que podemos ficar até Maio de 2008, altura em que estamos despachados com esta passagem pela Índia. Jura e explica que só assinamos o contrato por um ano porque é assim mesmo e tal,e faz-nos, por sua vez, prometer que não vamos sair antes de Maio 2008. Estamos satisfeitos. Seis meses depois anuncia a "péssima notícia": a filha acabou os estudos e vai voltar a viver com a família (eles vivem no andar de baixo), e o apartamento deles já está a abarrotar e por isso querem dois dos nossos três quartos. Amanhem-se vocês os cincos num quarto (afinal vocês são estudantes, ou não?) é a moral da história. E mentem: avisamo-vos claramente que íamos precisar do apartamento em Dezembro de 2006. Mentira.

É óbvio (por várias razões que não explano aqui) que, em ambos os casos, os donos dos respectivos apartamentos sabiam que estavam a mentir e que nos iam expulsar antes do prazo acordado. Eu sei que isto do mercado imobiliário é tramado, em quaquer parte do mundo. Mas isto aqui é demais: estou agora à procura da terceira habitação em menos de três anos. Claro que está difícil, porque esta cidade está a rebentar pelas costuras. Mas, para além disso, tem custos financeiros (temos que pagar comissão de uma renda mensal ao agente que nos "encontra" o apartamento) e psicológicos também. Onde é que, no meio de tudo isto, ainda vou encontrar a calma necessária para produzir algum conhecimento sobre este país?

Imagens de Deli: Northeasterners

Um casal em vestimenta tradicional tribal do Nordeste indiano (Northeast), durante um festival anual na minha universidade que celebra a cultura tribal daqueles estados que são conhecidos como "seven sisters" e se situam, quase enclavados e separados do resto da Índia, entre a Birmânia, a China, o Butão e o Bangladexe. O melhor daquele longo serão, para além deste desfile, é a deliciosa comida que preparam, incluindo a muito típica, saborosa e rara (para nós estrangeiros) carne de porco.

Os northeasterners - como são conhecidos - distinguem-se muito do resto dos indianos. A começar pelas suas características físicas: estatura pequena, fisionomia mongolóide e pele clara. Depois a religião, animista tribal ou, na sua grande maioria, cristãos. Finalmente, o seu estilo e a sua identidade: normalmente falam inglês com grande fluência, vestem-se à ocidental, cientes das últimas modas, e por tudo isso, são muito próximos dos estudantes estrangeiros da universidade e muito procurados pelos estabelecimentos comericais indianos que pretendem oferecer um serviço ocidentalizado. É o caso, em especial, da hotelaria e da restauração, em que os nordestinos compõem, por vezes, a maioria do pessoal.

Mas não é só por isso que eles se encontram nesse sector económico. A sua mentalidade ocidental e mais liberal permite que as raparigas sigam carreiras e profissiões que se encontram vedadas às aspirações das suas congéneres "indianas" (chamemos-lhes de "mainstream indostâncias"), sujeitas a pressões familiares muito mais conservadoras. Num restaurante da Pizza Hut, por exemplo, e em hotéis de categoria superior, para além dos Notheasterners, há, por razões semelhantes, um único outro grupo étnico sobre-representado: os goeses.

Mas voltemos aos Northeasterners. A realidade é que vivem à margem da restante sociedade indiana, especialmente aqui em Deli e no Norte da Índia. A sociedade indiana indostânica discrimina-os fortemente. As raparigas são frequentemente alvo de abusos sexuais e as violações não são raras: aos olhos dos jovens indianos, especialmente os embriagados, as frágeis raparigas parecem alvos fáceis e todo o seu comportamento parece-lhes convidativo: "elas são fáceis e querem", pensam (idem para os jovens turistas indianos e as jovens goesas). Os rapazes são, por sua vez, alvo de frequentes cenas de violência. Colegas meus contam-me também que nas próprias universidades (não na minha, no entanto) por todo o país eles são discriminados em termos de avaliação. Um deles, contou-me o episódio em que ele teve a nota mais alta e um professor insinuou, à frente de toda a turma, que ele estaria envolvido fisicamente com uma das directoras do departamento: "Não há outra explicação para que ele tenha tido notas melhores que vocês todos", explicou.

O problema assume proporções maiores se incluirmos também os fortes sentimentos separatistas que se vivem nesses estados do Nordeste. É uma longa batalha política e armada que vários grupos têm conduzido há mais de cinco décadas e que já provocou milhares de mortos. Parece-me, no entanto, que o conflito é resultado, e não causa, deste grande fosso entre duas culturas - e porque não civilizações - distintas, e da discriminação de que a parte mais frágil (a população tribal) tem sido historicamente alvo.