quarta-feira, 4 de junho de 2008

Sons da manhã de Deli


Escrevi este texto algures em 2006. Encontrei-o assim, incompleto, mas acho que ainda merece ser publicado nesta vida em Deli.



Se há algo em Deli de que me vou lembrar para o resto da vida, são os sons da cidade, os barulhos, as músicas, os gritos, os automóveis e as crianças. É sabido que a Índia é um país propício à exploração máxima dos nossos sentidos, com especial relevância para o olfacto. Talvez por me ter habituado desde cedo aos cheiros, com os caris e sarapatéis cozinhados lá em casa, são assim os sons que mais me têm marcado nesta vida em Deli.

Logo de madrugada, com o sol ainda por nascer, ouvem-se os primeiros ruídos que testemunham e marcam o início de um novo dia. São as empregadas domésticas que acordam, ligam as luzes e iniciam as suas tarefas, incluindo acordar as crianças para a escola, fazer o chá e preparar o farnel para o pai da família. Qualquer família nesta área residencial de classe média tem, pelo menos, uma destas empregadas (maioritariamente do Biar ou do Nepal), e na maioria dos casos elas residem a tempo inteiro em sua casa.

Mas antes mesmo de executarem essas tarefas madrugadoras, as empregadas gozam uns poucos minutos de privacidade e solidão. Oiço-as então a tomarem banhos de balde, com a água a escorrer pelos inúmeros canos de esgoto e, nos casos em que a janela da casa de banho dá para o meu balcão, ouve-se mesmo a água a gotejar e a escorrer pelo chão.

Então, em paralelo, emerge também das trevas o mundo animal. Que coexiste aliás surpreendentemente bem com o mundo humano. Os esquilos descem das árvores, as vacas iniciam a sua procura de comida nos amontoados de lixo, e, obviamente, os pássaros começam a fazer-se ouvir, num familiar coro de melodias. No sentido contrário, as dezenas de cães que patrulham o bairro durante a noite, retiram-se, prontos para enfrentarem mais um dia sonolento.

É por essa altura, com o sol a anunciar-se por trás do prédios, que se ouve a primeira bicicleta a percorrer as pequenas ruas alcatroadas e poeirentas. Uma das suas rodas tem sempre uma falha qualquer, talvez um raio deslocado, e é assim que se anuncia, sonoramente, aos chios, a chegada das notícias do dia. Em cada esquina, o rapaz desce da bicicleta, e, sem recurso a qualquer cábula, faz uso da sua genial memória, retirando o jornal ou a combinação de jornais correcta para cada um das centenas de apartamentos que serve todos os dias.

Outro som peculiar marca esse processo de distribuição. As escadarias dos prédios aqui são abertas; dão portanto para a rua. Em vez de subir e descer as escadas todas, o rapaz enrola o jornal ou os jornais com um anel de borracha, mira o andar respectivo, aponta e atira. Sem falha, de uma distância de dezenas de metros e do meio da rua, ali em baixo, as novidades do dia chegam assim sonoramente à porta de casa, embatendo na parede do meu quarto e caindo com um som de arraste no terraço poeirento.

É agora que começa o movimento dentro das casas. As famílias acordam e na cozinha as empregadas cedem o lugar às mães, indo acordar e vestir as crianças. Os homens, de ceroulas no inverno, de cuecas no verão (é assim que vêm buscar os jornais aos terraços), dão uma breve vista nas letras garrafais das capas da imprensa e vão tomar banho, para depois se sentarem e comerem umas ap ...

1 comentário:

  1. Que bela vida urbano-bucólica.
    Estou tendo inveja de si, meu amigão.
    Etaniel.

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