sábado, 31 de julho de 2004

Sudaneses, uzbeques e coreanos em Nova Deli (ou Afinal o mundo é maior do que eu pensava)

E agora já vos escrevo do meu portátil que liguei com sucesso à rede eléctrica indiana, aqui no quarto 343 do Sutlej Hostel, Jawaharlal Nehru Campus, Nova Deli. Esperemos é que nestes minutos em que o tenho ligado não haja nenhuma grande sobrecarga de tensão ou flutuação, senão o meu belo Compaq vai logo à vida. O que será do agrado das dezenas de estudantes indianos que insistem em dizer que “you have done a bead business, this type (...) you get for half the price in India”.

Segundo dia em Nova Deli. Desta vez insisti com o Suhail que eu dormia no chão. E lá magicou um beliche finissimo mas que me permitiu dormir com mais descanso no fresco chão de pedra. No verão os estudantes inundam os seus quartos de água para manter a temperatura fresca e evitar o pó (muito pó, tanto pó só nesta residência como em Portugal inteiro).

Ontem fui ter ao ICCR, a instituição cultural do Governo indiano que me dá a bolsa. Surpreendentemente correu tudo muito bem, deram-me logo dois meses de bolsa em cash. O problema é aquilo fica no Norte de Deli, a cerca de 15km do meu campus. De autocarro demora mais de uma hora (20 cêntimos) e de rick-shaw (memorizem: triciclo-engraçado-indiano-preto-e-amarelo) uns 40 minutos, 1,10 Euros.

Portanto, imaginem a minha reacção quando me disseram que precisavam de um atestado da minha Universidade para hoje. Assim, voltei lá hoje de manhã a entregar-lhes o dito e aproveitei para conhecer um uzbeque e um cazaque, estudantes da minha universidade, e igualmente bolseiros do ICCR.

Com as minhas oito viagens prévias à Índia não sou certamente o primeiro a desesperar com a burocracia e lentidão/ineficiência administrativa deste país, muito menos quando tudo tem corrido agradavelmente bem. Mas percebo que ser estudante da União Europeia tem as suas vantagens, as autoridades confiam mais e dispensam-nos de bastantes formalidades.

Só notei isso quando encontrei estes cazaques e uzbeques que são martirizados com burocracias, papeladas, affidavits, selos, vistos, declarações, certidões, passaportes, autorizações, recomendações e demais coisas que mais e mais me parecem certamente as invenções indianas para o mundo contemporâneo (embora admita que foi justamente o Ocidente que importou esta burocracia para a Índia, começando com os recenseamentos britânicos em inícios do século XIX).

Há uma fauna de estudantes digna do zoo de nacionalidades mais bizarro à face deste planeta. Este campus tem enormes comunidades de sudaneses, etíopes, nepaleses, japoneses (digam-me um metro quadrado deste planeta onde os nippons não tenham estado ainda), butaneses, indonésios, azeris, portugueses (!) etc.

Claro que também há nacionais europeus, especialmente franceses, alemães espanhóis, mas são-no em minoria. A maioria vem mesmo destes outros países em desenvolvimento com que a Índia socialista pré-1990 (e porque não a Índia sem-socialista de hoje) manteve relações privilegiadas, no seio do bloco dos não-alinhados.

Isto claro que dá um toque essencialmente multicultural ao campus, para além da diversidade interna enorme da própria Índia. De todos os estados há estudantes, e pelo tom da pele, pelo vestuário e até pela língua e movimentos reconheci dezenas de grupos étnicos diferentes, factor aliás reforçado conscientemente pela política de quotas adoptado pela Universidade.

Na lista de bolseiros que me entregaram ontem estão ainda uma alemã, dois espanhóis (...e eu sou o primeiro estudante português na história destas bolsas!), uma italiana e mais alguns escandinavos. Há uma Foreign Students Association e hoje o meu amigo Beck (sim, como a cantora) cazaque levou-me lá, abriu a porta, para eu me defrontar com o quarto que certamente ganharia qualquer primeiro prémio num concurso de arte ou escultura contemporânea ocidental.

Algumas cadeiras abandonadas ao acaso, uma escrivaninha com um telefone dos ano 70, o resto do quarto vazio e arejado (existe poeirado?) por janelas à volta. Todo e qualquer milímetro estava coberto por meio centímetro de poeira acastanhada, finissima, dando uma luz alaranjada a tudo. Na parede um quadro de arte contemporânea estudantil (tipo cartazes políticos do Bloco na UNL) rasgado ao meio com a humidade e com o tempo. À medida que entrávamos, ficavam para trás as nossas pegadas no chão. Estou mesmo em Nova Deli.

sexta-feira, 30 de julho de 2004

Dia 2

Esperava-vos um longo texto sobre os primeiros elementos multiculturais que tenho testemunhado nas ultimas 48 horas no campus da JNU, mas, devido a dificuldades tecnicas, tal vai ser impossivel hoje. Tenho um chip USB comigo (riam-se, eu sei que tem um nome tecnico que desconheco) mas acabei de realizar que por qualquer razao deshumana nao eh possivel liga-lo aqui ao computador no cibercafe ("Aliens on-line", no topo de uma colina poeirenta, passando por cerca de 4 vacas.

As aulas comecam oficialmente hoje e ainda me falta inscrever-me, finalizar o processo de recepcao de bolsa, registar-me oficialmente como estrangeiro na India (se daqui a 13 dias o nao tiver feito ainda, avisem-me, porque serei expulso), ir as aulas e demais necessidades academicas (programas, cadernos, fotocopias), abrir uma conta bancaria, arranjar telemovel com modem para o meu portatil e, claro, encontrar um quarto nas redondezas. Sobre esta aventura havea mais num proximo post.

Agora tenho que ir de mota, com o Suhail, bater as ruas de Munirka e Bihr Sarai ah procura de quartos que sejam limpos, acessiveis em termos de preco, redondeza calma, proprietario nao-aldrabao, vizinhanca simpatica. Obviamente impossivel. Mas nao custa nada tentar. Alias, na India tenta-se tudo e sempre.

quinta-feira, 29 de julho de 2004

Chegada

E aqui estou eu, sentado na sala de computadores da School of International Studies, da Jawaharlal Nehru University. A viagem correu bem e cheguei a Deli pontualmente. A minha espera estava alguem do ICCR (o instituto cultural do Governo indiano, de que sou bolseiro), e passei em seguranca pelas centenas de alraboes, taxistas, agentes, friends e demais gatunos avidos de enganaram um europeu ingenuo. Levaram-me num taxi para a Universidade.

Chego ao campus pela 1 da manha. A imagem, para um estudante portugues, eh surpreendente. Dezenas de estudantes polvilham as ruas e os cafes, conversando ao calor da noite, discutindo politica, no sentido lato, discutindo tudo. Sou amavelmente recebido pelo meu amigo Suhail, muculmano originario do estado do sul da India, Kerala, que esta a fazer o doutoramento sobre "literary struggle by the Malabar intellectuals against the colonial empires", incluindo obviamente referencias hostis aos portugueses. Ja da minha ultima vez o convenci a ler tambem algo do lado europeu. Vejo que surtiu efeito: confidenciou-me ontem, secretamente, que quer ir para Goa ou Portugal estudar os arquivos para "know both sides of the story".

Secretamente, porque talvez como militante activo do Communist Party of India, Marxist, (CPI-M), nal lhe fique bem ter esta visao. Alias, dormi esta primeira noite numa cama de madeira partilhada com este ferrencho comunista que fez parte das manifestacoes contra a inauguracao de um pequeno cafe da Nestle (Nescafe) no campus, e cuja imagem no telemovel eh a foice e o martelo sovietico. Toda a JNU respira fortemente socialismo. Por todo o lado estao posters e propaganda politica. Ha obviamente associacoes de partidos moderados ao centro, e ate uma minoria radical nacionalista. Mas a nota dominante, que ja da ultima vez tinha registado, eh que aqui ser comunista ainda eh normal, pelo menos entre estes meus amigos. A ideia de que o socialismo passou ah Historia, como muitas vezes cremos nestes liberais anos portugueses, nao faz sentido algum neste campus, e - creio - neste pais chamado India.

Por hoje eh tudo, o computador diz que vai fechar daqui a 30 segundos...

quarta-feira, 28 de julho de 2004

O vôo

E aqui estou eu de partida. Sentado ao computador numa aldeia nas vizinhanças de uma capital europeia, com a brisa fresca do Monte Manique a entrar pela porta do terraço. Já houve o tradicional jantar de despedida, com a família e um amigo. Pouco desfrutado, porque a mala ainda estava por fechar (e ainda o está). São uma da manhã. A partida do vôo KLM para Amesterdão estã prevista para as 6 da manhã. Tenho ainda uma hora para rever se me esqueci de algo.

Como é que se faz uma mala para uma estadia de dois anos na Índia? Especialmente para uma cidade onde as temperaturas mínimas são de 3 graus negativos e as máximas atingem os 46? Sinceramente, não sei. Levo alguma roupa, o mínimo. De resto, papelada, utensílios electrícos ou electrónicos de estimação, um guia Rough Guides India, manual de Relações Internacionais (Dougherty&Pfaltzgraff, dá sempre uma segurança), poucos cd's... e muito boa disposição, porque me aguarda uma civilização diferente que só com muita paciência e abertura de espírito irei ultrapassar sem mazelas.

Devem estar a pensar porque não falo das despedidas. 1º porque não tenho namorada, e isso jã facilita tudo à partida. 2º porque simplesmente nunca liguei, nem a minha família o faz, às despedidas emocionais e titânicas. É tudo relativizado a uma pequena saída. Acho que já estamos todos habituados a viajar. O meu pai saiu em 1961 com 18 anos pela primeira vez de Goa para estudar em Coimbra, e depois em Colónia e Munique. A minha mãe, católica da Renânia, casou um goês e foi viver para o Brasil e depois 25 anos (e para sempre, provavelmente) para Portugal, onde já fala um português gramaticalmente mais correcto que muitos apresentadores de televisão. Portanto, porque não hei-de eu ser capaz, neste mundo que encolheu tanto desde 1962, de atravessar o mundo para perseguir o meu sonho de redescobrir as minhas raízes?

Tudo encaixa perfeitamente no meu plano de vida que já há muito traçei.  Admito que muito possa mudar ainda mas este é certamente o vôo no qual quero embarcar.

Amanhã por esta hora espero estar em Nova Deli. Até já.

sábado, 24 de julho de 2004

O mergulho

Este é o meu novo blog, fruto de uma necessidade imediata. Estando para breve o mergulho nas turvas águas indianas, não quero deixar de manter o contacto com o suave oceano luso de amigos, familiares e conhecidos que me acompanhou nos últimos 23 anos de vida. Por aqui vos transmitirei as minhas aventuras, as minhas viagens, as minhas experiêncas, as minhas saudades e as minhas emoções.

Faltam três dias para as ensurdecedoras buzinadelas nova-delienses terem mais um ouvinte. Estou pronto para o mergulho. Espero reecontrar-vos todos daqui a dois anos, quando voltar à superfície. Até lá, espero ter a vossa companhia indirecta por via deste blog. E a vossa visita.